sábado, 29 de janeiro de 2011

Levaram o Varejeira no bico

Chegou praticamente recém nascido à casa do aposentado oficial.

Para alimentá-lo, o veterano quebrava a casca do grão de girassol e servia a semente no bico do pequeno papagaio.


Tenente reformado, Adolfo trabalhou muitos anos na ROTA, a temida Rondas Ostensivas Tobias Aguiar, que marcou época durante a ditadura militar.


Mesmo a vivência sob duro regime, de certas e constantes arbitrariedades, difícil imaginar esse senhor cometendo alguma.


Nem a obscuridade do rígido sistema foi capaz de moldar nele resquício de maldade, tal é sua forma de ser.


O relacionamento com a vizinhança. O apego com o filho e neto. De riso fácil. É emérito brincalhão em qualquer roda que chega.


Até a desconfiança peculiar à farda da justiça abrigou-se em desuso feito o coturno envelhecido.


A aposentadoria lhe trouxe convivência despreocupada. Não ganha muito, pelo contrário.


Mas a comedida soma mensal o permitiu saborear incontáveis cervejas diárias; acompanhadas do inseparável quebra gelo.


Hábito que abandonara faz algum tempo.


Nos bares goza de amizades várias. E quase sempre promove o temperado churrasco pra passar o tempo em meio ao carteado.


Àqueles que não colaboram e ficam próximos à churrasqueira afim de algum naco, taxa-lhes o apelido de varejeira, ou seja, mosca da carne.


E o sarro pelo vulgo foi tanto que o papagaio já com dois anos de criação, falante ao extremo, reproduzia claramente a indagação.


Ao tratá-lo e mimá-lo com carinho, carregando-o no ombro ou na mão, ouviam o penacho dizer:


- E aí, Varejeira?


Aconteceu na tarde chuvosa de inverno. Apareceu na rua um rapaz e perguntou a dois garotos da redondeza: se por ali alguém tinha um papagaio?


Informado, seguiu à porta do oficial e relatou a história:


Que num momento de distração, o seu papagaio, ainda arredio, voou, fugindo. E estava na árvore de um terreno baldio próximo dali.


Querendo capturá-lo, precisava do auxílio de outro para atrair sua atenção.


O prestativo homem crê na conversa e em socorro leva o sonoro: E aí, Varejeira?


Lá chegando, em vista do mato crescido e a insistente garoa, Adolfo ficou à distância.


Enquanto isso, o jovem simulou encenação. Sob a copa, em posse da gaiola, gritou:


- Ele voou pro outro lado da rua.


Ágil, entre os arbustos, disfarçou. Correndo ganhou sumiço dobrando a primeira esquina, carregando o papagaio do tenente.


Passado um ano desse infortunado episódio, conversamos em frente ao local do crime. Ele relembra ainda inconformado:


- Como é que pode? Tantos anos caçando bandidos. Conhecendo malandro de tudo que é jeito.

Um pirralho. No bico doce enganou a mim e levou meu papagaio.


Fica o apelo. Se o caríssimo leitor, ao andar pelas cercanias de Taboão da Serra, ouvir de um loureiro a especial tagarelice, comunique-se com este cronista.


Não há gratificação, mas o nosso amigo tenente próximo de completar 70 anos agradece.


Embora que a objetividade não esteja mais aguçada, o samaritano não perdeu o humor.


E nem mudou o comportamento apesar do jocoso chamamento que desde então, ao invés de Adolfo, passou a ser sua alcunha:


- E aí, Varejeira?

Marco Pezão

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