domingo, 30 de maio de 2010

O sarau que vem lá do fundão

Quem lê não mósca, voa mais alto...

- Vamos fazer um sarau, Bodão!

- Mas que diabo é um sarau, Pezão?

- Um sarau de poetas. A gente vem aqui declamar. Vou te apresentar o poeta da cidade, o Sergio Vaz.

Essa conversa aconteceu por volta de setembro ou outubro de 2001. Trabalhávamos em Taboão da Serra. Levei o amigo Bodão pra conhecer o Sergio, então funcionário da câmara municipal.

À noite fomos ao bar. Tínhamos a poesia agregada ao cotidiano. Tomamos cervejas. O espaço inspirou. Era um anexo gostoso. Tipo varanda, com árvores rodeando arejada lateral. Na conexão com o balcão, circular porta de vidro garantia certa privacidade.

De quinta-feira a domingo aconteciam apresentações de grupos de samba, rock e outras atividades. O Bodão sentiu firmeza e falou:
- De segunda à quarta, qualquer dia, dá pra armar.

E o Vaz soltou a profética frase:
- Quarta-feira! Quarta-feira é o dia consagrado à poesia.

Às oito horas da semana seguinte nos reunimos. Umas doze pessoas. Amigos, nossas mulheres, poucos poetas e o microfone. Iniciamos ali o Sarau da Cooperifa.

Não percebíamos, à época, a reinvenção do sarau só de poemas falados. Trabalho e empenho não faltaram. O sarau firmou! A freqüência aumentando. Das curtições que passamos, disse certa vez:
- É o rastilho da pólvora, Sergião. Pegou e vai embora!

São muitos os detalhes desta história que ainda se escreve. Mas, o fato é que estou seguindo luminoso rastro, nove anos passados; presente ao Sarau Vila Fundão.

A Vila Fundão fica próxima ao terminal do Metrô Capão Redondo. Parcialmente urbanizada, a favela faz parte do complexo juntamente com a Grisson e Godoy.

Subindo a avenida Sabin, na terceira à direita fica a rua Glenn, e logo se avista o bar do Kanu, sede da comunidade Vila Fundão.

Local bem arranjado. E, já na chegada, o alô de Fernando Ferrari, 32 anos, que é quem comanda o vapor do sarau:
- É bar de Vila Madalena, né Pezão?

A abertura da programação exibe sempre curta metragem de produção periférica. Tem quarenta cadeiras ocupadas. Desta feita mostra cenas de outros saraus e depoimentos de poetas e artistas da periferia.

Fernando conta que a descoberta aconteceu no Sarau do Binho. Entusiasmado, levou a idéia e resolveu fazer diferente. O Sarau Vila Fundão foi fundado em novembro de 2009.

Dois jovens anotam os nomes dos participantes. Fernando Santista, como é conhecido, é formado em Ciências Sociais e seu envolvimento na comunidade vem de longa data. Conta do processo fantástico que é a leitura: “Estar em qualquer lugar do mundo através das linhas”.

A poesia rola. Pessoas se aglomeram na entrada. Há magia, embora as dificuldades. A busca em aprofundar conhecimentos é constante. Ansiada cidadania.

Algo de novo nasce na Vila Fundão. O apresentador cita Paulo Freire, da Pedagogia do Oprimido:
- “Não se aprende sozinho, se aprende em comunhão”.

O rap empolga. Interpretações, violões. Adultos e crianças ocupam o mesmo palco.

Da atual relação, os mais de sessenta saraus espalhados pela capital e grande São Paulo vão incentivando e acolhendo outras artes suburbanas. Se diversificando, assumindo identidade própria.

A poesia, o cinema, o teatro, a música. Cada qual expressando seu olhar ao alto. Um projétil que visa diminuir diferenças e a desigualdade social.

- É preciso investir na comunidade. Nas pessoas que têm comprometimento com a cultura de rua, comenta o anfitrião.

Se olharmos ao redor e pouco além, é fácil constatar: se depender do Estado, é bola nas costas.

A singeleza dos versos ecoa longe. O rastilho da pólvora segue adiante.

Anunciado violino, os acordes soam íntimos, longos...
- Irmão, ouvir violino aqui na quebrada é um arraso!

Fernando Santista comanda o vapor no Sarau Vila Fundão...

Sergio Vaz na tela...

Poetas, ele e o Binho hoje são reflexos...

Não há aço que contenha o caminho, né Fernando?...

O sonho deixou de ser somente um sonho. Pergunte ao Luan, cria que se cria a cada dia...

Olhares atentos e cheios de intentos se reproduzem...

A palavra ecoa e penetra...

Augusto! Aventura das letras sem freios, augusto...

O trilho se estende e atende...

Fé na causa. Transformar bar em casa de cultura é o ato...

Vamos adiante. A missão aquece e enriquece...

Passarela de sentimento mútuo...

Renova canções...

Expõe pensamentos...

Fortalece a nova geração...

Que descobre a importância de ter o livro à mão...

Somos o curto-circuito que não interrompe. Liga...

Se liga nos acordes...

O porvir chegou...

Inundando o leito antes seco...

Enxergar além da leitura...

Harmonia é o tom e dita o ritmo...

O saber não somente por saber...

Aplicar é a toante diferença...

Ali, o balcão não é somente um balcão...

Os amigos vivenciam a nova conotação...

Há muito o que fazer, sem dúvida...

A marcha segue forte, do fundão de nossos corações...