- Vamos fazer um sarau, Bodão!
- Mas que diabo é um sarau, Pezão?
- Um sarau de poetas. A gente vem aqui declamar. Vou te apresentar o poeta da cidade, o Sergio Vaz.
Essa conversa aconteceu por volta de setembro ou outubro de 2001. Trabalhávamos em Taboão da Serra. Levei o amigo Bodão pra conhecer o Sergio, então funcionário da câmara municipal.
À noite fomos ao bar. Tínhamos a poesia agregada ao cotidiano. Tomamos cervejas. O espaço inspirou. Era um anexo gostoso. Tipo varanda, com árvores rodeando arejada lateral. Na conexão com o balcão, circular porta de vidro garantia certa privacidade.
De quinta-feira a domingo aconteciam apresentações de grupos de samba, rock e outras atividades. O Bodão sentiu firmeza e falou:
- De segunda à quarta, qualquer dia, dá pra armar.
E o Vaz soltou a profética frase:
- Quarta-feira! Quarta-feira é o dia consagrado à poesia.
Às oito horas da semana seguinte nos reunimos. Umas doze pessoas. Amigos, nossas mulheres, poucos poetas e o microfone. Iniciamos ali o Sarau da Cooperifa.
Não percebíamos, à época, a reinvenção do sarau só de poemas falados. Trabalho e empenho não faltaram. O sarau firmou! A freqüência aumentando. Das curtições que passamos, disse certa vez:
- É o rastilho da pólvora, Sergião. Pegou e vai embora!
São muitos os detalhes desta história que ainda se escreve. Mas, o fato é que estou seguindo luminoso rastro, nove anos passados; presente ao Sarau Vila Fundão.
A Vila Fundão fica próxima ao terminal do Metrô Capão Redondo. Parcialmente urbanizada, a favela faz parte do complexo juntamente com a Grisson e Godoy.
Subindo a avenida Sabin, na terceira à direita fica a rua Glenn, e logo se avista o bar do Kanu, sede da comunidade Vila Fundão.
Local bem arranjado. E, já na chegada, o alô de Fernando Ferrari, 32 anos, que é quem comanda o vapor do sarau:
- É bar de Vila Madalena, né Pezão?
A abertura da programação exibe sempre curta metragem de produção periférica. Tem quarenta cadeiras ocupadas. Desta feita mostra cenas de outros saraus e depoimentos de poetas e artistas da periferia.
Fernando conta que a descoberta aconteceu no Sarau do Binho. Entusiasmado, levou a idéia e resolveu fazer diferente. O Sarau Vila Fundão foi fundado em novembro de 2009.
Dois jovens anotam os nomes dos participantes. Fernando Santista, como é conhecido, é formado em Ciências Sociais e seu envolvimento na comunidade vem de longa data. Conta do processo fantástico que é a leitura: “Estar em qualquer lugar do mundo através das linhas”.
A poesia rola. Pessoas se aglomeram na entrada. Há magia, embora as dificuldades. A busca em aprofundar conhecimentos é constante. Ansiada cidadania.
Algo de novo nasce na Vila Fundão. O apresentador cita Paulo Freire, da Pedagogia do Oprimido:
- “Não se aprende sozinho, se aprende em comunhão”.
O rap empolga. Interpretações, violões. Adultos e crianças ocupam o mesmo palco.
Da atual relação, os mais de sessenta saraus espalhados pela capital e grande São Paulo vão incentivando e acolhendo outras artes suburbanas. Se diversificando, assumindo identidade própria.
A poesia, o cinema, o teatro, a música. Cada qual expressando seu olhar ao alto. Um projétil que visa diminuir diferenças e a desigualdade social.
- É preciso investir na comunidade. Nas pessoas que têm comprometimento com a cultura de rua, comenta o anfitrião.
Se olharmos ao redor e pouco além, é fácil constatar: se depender do Estado, é bola nas costas.
A singeleza dos versos ecoa longe. O rastilho da pólvora segue adiante.
Anunciado violino, os acordes soam íntimos, longos...
- Irmão, ouvir violino aqui na quebrada é um arraso!