terça-feira, 5 de abril de 2011

É dinheiro que você quer?

Marco Pezão


(poesia


paixão dos que seguem


não cegos)


Capítulo um


(Apartamento: quarto, sala, cozinha e banheiro. Porta de entrada. Vitrô ao fundo, cortina, sofá. Estante de livros, aparelho de som. Mesa redonda e cadeiras. Espelho. Quadros na parede. No quarto, cama de casal, guarda-roupas, penteadeira. Na cozinha, pia com gabinete. Geladeira, fogão, armário, mesa e cadeiras. Anoitecer. Lídia abre a porta da sala. Acende a luz. Coloca a bolsa sobre o sofá e vai à cozinha. Deixa um pacote de compras na mesa. Volta à sala e liga o som: Ideologia, do Cazuza. Retorna. Abre o gabinete e pega a chaleira. Põe água no fogo. Segue ao banheiro. Olha-se no espelho. Tira a roupa. Veste algo leve. Na privada faz xixi. Lava as mãos. Penteia o cabelo. Volta e arruma o bule. Pega o pó e prepara o café. Serve-se. Na sala, Lídia tira da bolsa o maço de cigarros e isqueiro. Acende. Senta no sofá. Bebe e fuma. Tempo. Ruído de chave na porta. É Moscou quem chega. Traz duas malas grandes. Bolsa tiracolo e sacola. Olham-se)


Lídia – Quem é vivo sempre aparece, né, Moscou?


Moscou - Tudo bem, Lídia?


Lídia - Tudo bem? (Levanta. Vai à cozinha) Dá licença, Moscou!


Moscou - Está zangada comigo?


Lídia - (Servindo-se de café. Irônica) Oh! Não! Porque eu deveria? Vou lembrar o que você disse...


Moscou – Que eu tinha um trabalho a fazer e ia ficar uns três dias fora...


Lídia – Só que esses três dias se prolongaram por três meses. E você nem ao menos se prestou a dar um telefonema. (Bebe o café) O que custava?


Moscou - Não vai servir café para mim?


Lídia - (Voltando pra sala. Moscou na passagem) Dá licença, Moscou! Tremenda falta de consideração!


Moscou - (Segura Lídia) Qual é que é Lídia? Eu vou te explicar!


Lídia – Sei que existe uma história interessantíssima a contar! Me respeite, por favor, Moscou!


Moscou – (Moscou libera passagem) Não fique estressada. Eu fui obrigado a mentir. Posso justificar o sumário abandono?


Lídia – Sumário abandono! Já estava conformada. E, agora, volta você de novo com a mesma ladainha.


Moscou - Tá limpo! Sem justificativas! Se liga, Lídia, você vai ter uma puta surpresa! (Cantarolando pro banheiro) Eu falei pra você: Quem chora não mama/ Quem chora não mama/ Mete uma chupeta na boca/ faz beicinho e desencana. (Acende a luz, olha-se no espelho. Urina. Lava as mãos. Enxágua o rosto. Ajeita o cabelo. Volta à cozinha. Bebe água e vai à sala. Sempre cantando). Quem chora não mama/ Quem chora não mama.../ Vê se eu estou na esquina/ debaixo ou de cima/ finge que me ama... Quem chora não mama...


Lídia – Para com isso, Moscou! Não dá valor aos meus sentimentos e ainda fica tirando sarro!


Moscou - (Gritando) Qual é o drama, Lídia?


Lídia – (Explosiva) O drama? Você não sabe o que é! O sujeito da imobiliária ligar todo dia pro escritório. Três meses de aluguéis atrasados! Se não fosse Leonor aparecer e me emprestar o dinheiro. Estou cheia de passar humilhações. (Anda até o vitrô. Abre a cortina. Olha pra fora. Respira. Desabafa) O nosso relacionamento definhou e você não tem definição. Já passou dos quarenta anos e não sabe o que quer da vida. Estou me sentindo insegura e a insegurança me faz minguar. Eu não estou legal e você Moscou é a razão do meu mal estar.


Moscou – Sabe qual é o seu mal?


Lídia – Aqui pra você, ó! (Fecha a mão e mostra o dedo central) Não me venha com sermão!


Moscou – O teu mal é dinheiro! Só é capaz de sentir-se bem quando amparada por ele. Do contrário nega fogo!


Lídia – (O encara firme) Deixa de ser gozado. Dá mancada e ainda vem me cobrar?


Moscou – (Agressivo) Não estou te cobrando porra nenhuma! Digo que a tua aflição não é devido a minha ausência, e, sim, pela falta de dinheiro!


Lídia – São os compromissos assumidos. Você não vive o presente. Vive criando algum personagem pra se refugiar. É preciso por uma tampa no passado e ir a forra com o futuro. O teu grupo Semente ficou pra semente e o Moscou ainda está no palco. Não percebe que perdeu a batalha. Seja qual for o motivo, você dançou. É preciso reconhecer. Eu sou realista. O trabalho é uma necessidade. A realidade te amedronta. Você está pagando comédia, Moscou!


Moscou – Pagando comédia? Fugindo da realidade? Eu? Vai foder o caralho! Estou muito mais atuante do que você imagina! Buceta! (Põe as duas malas sobre o sofá e abre uma) Se for dinheiro que marca presença, daqui em diante, estarei bem representado! (Pega maços de notas. Joga para Lídia) Esse é pro aluguel! Esse é para você parar de me encher o saco! Esse é pra você melhorar teu humor. Esse é pra você gastar com suas babaquices. Vou instaurar o teatro do horror! “To be or not to be! To be or not to be!” Valeu mestre, valeu pelos ensinamentos. Vou fazer bom uso deles!


Lídia – De onde veio esse dinheiro, Moscou?


Moscou - É fruto da minha indefinição, você não disse? (Abre a outra mala) Caralho! Buceta! (Esparrama dinheiro) E tem essa pacoteira toda pra acabar com tua insegurança. (Sai rindo pra cozinha jogando dinheiro) Sabe contar? Sou dono de duzentos milhões de reais. Duzentos milhões de reais! (Serve-se de café) Acho que dá pra levantar o moral, não dá? (Bebe) Duzentos milhões! (Ri) Surpresa? Isso não é teatro não, Lídia! Isso é real. (Avança e põe o copo sobre a mesa. Pega várias notas e as amassa) Apalpa! Sente o cheiro! Fedido, não é? Essa merda imunda vale mais do que qualquer pessoa no mundo! Jesus! Usado eternamente e vendido ao custo da fé. Dinherama! Dinherama! Dinheirama! (Joga o dinheiro)


Lídia – Moscou, de onde veio esse dinheiro?


Moscou – Primeiro me destrata e agora vem querer saber?


Lídia – Durante todos esses anos tenho acompanhado e apoiado tudo o que você tem feito. Conte-me tudo. Eu tenho direito de saber. Diga, Moscou!


Moscou - (Moscou pega um livro. Folheia. Vira para Lídia e ri nervoso) Transação de financeiras. Roubamos. Metemos a mão!


Lídia – Você enlouqueceu!!!?


Moscou - Quem sabe? (Fecha o livro numa batida) Só que eu virei um louco abonado. Ou será que a razão preencheu a lacuna do consciente, de uma vez por todas? (Beija o livro)


Lídia – Que delírio é esse, Moscou?


Moscou – Tá vendo como é? Cheguei numas de te explicar! Vim fazendo o maior castelo e você me esculhamba!


Lídia – Que maneira de falar é essa?


Moscou – Maneiras, maneiras...! Manéra, Lídia! Você não tá com essa bola toda, mas vou satisfazer sua curiosidade. (Emposta a voz) Com a devida ajuda de uma pessoa que deu a fita. Eu e mais dez parceiros executamos uma grande cena. Digna de ser projetada na tela. Pura ação! Não foi uma representação grotesca. (O livro se transforma num revólver) Se liga: - Todo mundo com a mão na cabeça! Ninguém vai se machucar. Queremos e vamos levar o dinheiro. Numa boa, entrega o figo que a calda derramou! Na moral! (Revive) Os cinco seguranças imóveis diante das bocudas. Armamento pesado. Surpreendemos os caras na boca da botija. Esperando o cofre abrir. (Gira pela sala como se contasse a história pra si mesmo) A informação do patrício foi quente como veneno! O automático só ia funcionar às 9h45 e a qualquer momento chegava escolta do transporte. Foram quatro minutos de tensão. Quando a porta destravou, senti um alívio enorme. A sensação é indescritível. É misto de sonho! Ator atuando com toda força viva! O cheiro do dinheiro me dopou. Foram instantes cruciais. O espanto, a raiva, o medo nos olhos, na face de cada um. Grana que não acabava mais. Malotes e mais malotes. O pensamento sorriu: - Meu Deus do céu! Vamos sair na boa e levando a boa! (Conta) Estávamos no 2º subsolo e deu a hora de fugir a milhão, levando uma pá de milhões! Miguélzinho, falou assim: “Quem é o motorista do blindado? Vem com nós e o resto vai pra dentro do cofre”. Nessa movimentação, por um segundo, desviei a atenção e um maluco de bigode fez menção de sacar uma arma enrustida. Não titubiei! (Faz da mão o gesto de revólver) Apertei a minha 45 com vontade. Pá, pá... As balas passando pelo silenciador ecoam um fino som rasgando o ar. Os balaços atingiram a testa do safado. Ele tombou. Estrebuchou e ficou ali sem vida, sem nada, com um fio de sangue escorrendo no canto da boca. (Mexe no dinheiro) Que sensação estranha estou sentindo, relembrando esses fatos. Os exercícios de laboratório. Minha memória emotiva. É como se tivesse vivido a mesma situação outras vezes. (Joga dinheiro) Loucura! Loucura! Tomaste conta do meu ser. Um golpe de mestre. Golpe perfeito. Tenho um roteiro recém criado. A bolada envolveu um bilhão e meio de reais. É mole ou quer mais? Delícia, delícia... (Curte o dinheiro).


Lídia – (Pega cigarro sobre a mesa. Acende) Você matou o guarda?


Moscou – Não tinha jeito. Era ele ou nós. Maior cuzão! Defende o dos outros e vai morar no cortiço.


Lídia – E você acha que vai ficar de graça? Toda essa fortuna e a polícia não vai fazer, nada?


Moscou – Polícia? Ora, ora, ora! Deixa correr atrás. É o trabalho dela. É o risco que eu assumi. Já vi sacanagem demais nesta vida. Estou bem escolado. Confio na minha inteligência. Na minha capacidade de ser rival deste sistema corrupto.


Lídia - (Abstraindo-se) Quanto dinheiro, Moscou?


Moscou – Li, Li, linda Lídia! Agora, o que eu mais preciso é de você! Foram noventa dias de completa concentração. Enrustido e estudando. Observei cada detalhe. Cada sub texto. (Em direção a Lídia) Fui comandante de toda operação. Troquei mil ideias com meus parceiros. O posicionamento. O timbre de voz e as máscaras. Ensaiamos com rigor a passagem pela tubulação e a entrada triunfal. As improvisações na boca de cena. A fuga e os imprevistos, devidamente calculados. (Ajoelhando-se entre as pernas dela) Eu tinha de me afastar de você. Inclusive pra não pôr em risco tua segurança. Lídia! Necessito sentir teu corpo! Quero te chupar todinha! (Tenta abraçar o ventre de Lídia)


Lídia - (Afastando-se) E esse apuro de morte? Esse dinheiro sujo de sangue? Tenho medo!


Moscou – (Anda de joelhos) Entenda, Lídia! Essa foi uma conclusão individual. Eu e meu ser afinados num só propósito. Tenho certeza que descobri o caminho certo. O filão de ouro. Satisfação enorme ter catado esse dinheiro! (Pega dinheiro no chão) Matei uma coisa que estava me devorando. A revolta que ardia, sumiu! Tá ligada? Sumiu! Lídia, analisa comigo. Um país como o Brasil? Grande e rico pra caralho! Se liga! Grande e pobre pra caralho! Em todos os sentidos! Buceta! (Levanta) Somos pobres de sentimentos brasileiros! Entende? Só um imbecil não consegue enxergar essa dualidade. Porque isso? Roubalheira! Roubalheira! (Vai até o vitrô e fecha a cortina) Desde que me conheço por gente não tenho ouvido falar senão em exploração. Lances que você está ligada e todo mundo tá com o saco cheio de saber. (Caminha) Um país como o nosso, em que o germe cancerígeno tem o nome de corrupção. Onde milhões e milhões de brasileiros vivem desordenadamente, muito aquém de uma vida saudável! Lídia, eu tenho me aprofundado no saber e a diretriz que o entendimento tem como resposta chama-se troco! Cheguei à conclusão que o único jeito de concorrer honestamente no mercado de trabalho é ser ladrão. É ser ladrão! Que o único jeito de eu dar o troco é viver intensamente este personagem e assumir os riscos desta nova carreira. “Olho por olho, dente por dente”. Roubaram-me as purezas do pensamento e transformaram meu amor em ódio. (Joga dinheiro sobre sua própria cabeça) Um novo enredo prenuncia-se grandioso! Lídia, nossa vida vai mudar. Eu te amo, acredite. Você será minha companheira nesta incrível aventura. Aqui estão os nossos milhões de reais. Mas, eu vou roubar é dólar. O câmbio mundial exige dólar, eurodólar. Ah! Ah! Lídia, Lídia! Agora, quero um tempo para os teus abraços. (Agarra Lídia)


Lídia - Não, não! Estou aflita. Sinto uma sensação angustiante.


Moscou – Quero te catar, quero te comer, quero te catar, quero te comer. Vontade de lamber teu grelo, tua xana! Tua bunda, hum, meu tesão...


Lídia – Para, Moscou! Leonor vai chegar!


Moscou – Porra! Cacete! Leonor? Quem é Leonor?


Lídia – É uma amiga que eu não via há muito tempo. E foi minha salvação. Ela me emprestou o dinheiro e eu paguei os três aluguéis atrasados!


Moscou – Tesudo, tesudo! Eu tô tesudo! Com muita vontade de trepar!


Lídia – Que coisa! Não quero nada com você! Eu estou chateada. Sem vontade de transar!


Moscou - O quê? Sem vontade? Chateada comigo? Ora, caralho! Deixa de frescura! E essa Leonor? O que ela vem fazer aqui? (Joga dinheiro pra Lídia) Paga o que deve e manda dar linha na pipa. Não quero testemunha em minha condecoração. (Gargalhada) Moscou, o ladrão atrevido! (Pega o livro em cima da mesa e coloca na estante) Me diz, me conta. Eu quero saber detalhes dessa amizade!


Lídia – (Senta na poltrona. Cruza as pernas) Ela está me fazendo companhia,


Moscou. Eu fiquei desesperada. Não sabia o que fazer. Você sumido, eu arrasada, te procurando nas delegacias, nos necrotérios. Em sua busca estive nos hospitais. E, por coincidência, nas Clinicas, fui me informar com uma enfermeira e ali estava ela. (Acaricia a região do joelho) Quanto tempo não via Leonor. A mesma, não mudou nada. Muito bonita e charmosa. Vestida de branco atendendo as pessoas. Nos encontramos para jantar e embora eu estivesse triste, rimos muito. Desabafei. Solícita, me emprestou o dinheiro. Devo mil e oitocentos reais a ela, e uma gratidão enorme. Cheguei a pensar em você morto e enterrado como indigente, já que seus documentos ficaram aqui.


Moscou – (No espelho em cima do móvel, mira-se) Dinheiro, dinheiro, é muito bom ter dinheiro, né, Giuseppe Richelo? Mas esse não é mais nosso problema, né, Brandão Agripino?


Lídia - Que diabo é isso? Falando com quem?


Moscou - Agora, meu nome é Giuseppe Richelo. Falsifiquei todos os meus docs. Tenho várias identidades. (Tira os docs do bolso) Também sou João da Silva e Carlos Pinho, sou o que eu quero ser e nada mais importa. Sou múltiplo, sou cidadão mundial! Então, meu benzinho, pensou que eu tinha ido pro vinagre?


Lídia – (Pega a xícara de café em cima da mesa e vai a cozinha. Moscou mexe na bolsa que está na cadeira) Viajou! Gozou! Giuseppe Richelo? João da Silva? Moscou, fala que é mais uma de suas brincadeiras. Que tudo é teatro. Que esse dinheiro é falso e você está me aplicando. Se embalou nos braços de alguma gostosona e com a maior cara de pau retorna e vem me xavecar, querendo me comer. (Serve-se de café) Enquanto eu estive por essa cidade afora te buscando, sofrendo com alguma possível fatalidade. Só Deus e Leonor sabem o que passei. (Voltando) Fala, Moscou! Diz que tudo é script de uma nova peça...


Moscou - (Moscou pega duas pulseiras e veste. Depois, uma corrente e um relógio Rolex, todos de ouro. Agita os braços) Aí, maluca! (Tira outra corrente e joga para Lídia, que pega) Isso é pra satisfazer o antigo desejo do teu pescocinho lindo. Sente o peso do quilate e creia de vez!


Lídia – (Admira e veste a peça) Uau, Moscou! Santa delicadeza! Deve valer um dinheirão!


Moscou - (Moscou com um par de brincos reluzentes) Orelhinha de meu amor não vai mais usar bijuteria! Os brincos são de pedras preciosas com acabamento em ouro branco. (Lídia coloca os brincos)


Lídia - (No espelho) Moscou, são riquíssimos! Ainda ontem comentei com Leonor que os meus brincos estão pra lá de batidos. Mas, nunca imaginar, ganhar uma autêntica jóia cintilante.


Moscou – A jóia torna-se valorizada quando colocada no contorno certo. Ficam uma graça em você. (Pega a sacola na cadeira) Agora os acessórios que enaltecem toda e qualquer vaidade feminina. (Desfaz os pacotes, lingeries e dois vestidos finos) Lembra, daquela vez, que passamos na rua Bela Cintra e você viu aquele vestido parisiense que tanto te encantou? Tó! Pra você embalar teu corpo. Corpo que é objeto de meu amor e desejo.


Lídia - É um luxo! (Põe sobre o corpo. Um e outro) Ó Senhor! Isto é mais que um sonho! É chiquérrimo! (As lingeries) Você adivinhou! Estava tão necessitada. Que gracinhas de calcinhas. Que bonito sutiã. Você acertou no tamanho. Moscou - E como errar? Seios, de meu amor, satisfazem minhas mãos na medida exata! (Nos seios de Lídia) Nossa, que saudade! Fica peladinha, fica. Experimenta o vestido, as calcinhas. Quero ver como ficam, pra depois arrancar nos dentes, na língua.


Lídia - (Esquivando-se) Agora não, Moscou! São lindos, adorei. Obrigada. Primeiro quero tomar banho. Na verdade, estou morrendo de fome. Na hora do almoço comi um lanche, tomei um suco e foi só. (Conciliadora) Compra uma pizza, compra. Assim, Leonor come também. Pode ser meio a meio: marguerita e quatro queijos, ela adora. Vamos abrir aquela garrafa de uísque que está guardada faz tempo?


Moscou – (Entusiasmado) Sacou, bem lembrado! Falei que ia chegar ocasião? Pensa. Um novo futuro está se projetando. Eu te adoro! Acredita em mim, Lídia. Acredita! Faz tempo que eu estava dando essa letra. No íntimo achei que você fosse vibrar.


Lídia - Entre falar e fazer existe uma diferença quilométrica. (Abraça Moscou) Sei tudo das tuas revoltas, Moscou. Quero refletir. Dá um tempo pra minha cabeça, como você mesmo diz! Senti muita saudade de você. Saudade de sua boca me beijar. (Beijam-se) Vai tentação. Pede pro pizzaiolo caprichar.


Moscou – (Apalpando Lídia) Tô indo, mas volto rapidéis. Quero te catar, quero te comer!


Lídia – Compra cerveja, também, louco! (Pega um maço de dinheiro) Mas, pra gente ser feliz é preciso tudo isso, Moscou?


Moscou – Lídia, se liga! Encare a realidade que está pintando! Você sabe das minhas batalhas! Você sabe do meu esforço. (Refaz o nó do tênis) Li, eu cansei! Cansei de correr atrás do dinheiro pro aluguel! De não ter uma casa digna, própria, direito comum a qualquer trabalhador. A gente quer uma roupa melhor, não pode. Quer sair e curtir a noite, não pode. Quer ir a um restaurante, não pode. Uma televisão a cores, daquelas telonas que você tanto quer? Não pode. Nem um fiatizinho a gente conseguiu comprar. (Anda e se exalta) Dá licença, o que pode sem dinheiro? O que pode, Li? Eu gosto de ler. Há quanto eu não compro um livro? Um cd. E o computador novo? E o meu teatro e a minha poesia? Vão permanecer eternos na gaveta? O que é a gente sem dinheiro, Lí? Pra mim chegou. Vão tomar no cú. Cansei de acumular frustrações. Acham que só eles podem! (Balança as chaves do carro) Aqui está nossa Pajero, último tipo, estacionada na vaga que por direito é nossa, e que não ocupamos. Não sou prego! Pra mim, bastou! (Joga notas ao ar com raiva) O sistema nos faz consumistas e não admite que participemos do mercado. Vão tomar na bunda, buceta! Fui buscar na mão grande! E vou mais fundo. Tenho muitas balas na agulha. Vou extravasar! Estou bem mordido com essa porra de sociedade globalizada. “Hay que endurecer-se pero si perder la ternura jamás”. Tchê, Tchê, Tchê Guevara! Eu estou na luta! (Abre a porta e sai)


Capítulo dois


(Atordoada pelos acontecimentos, Lídia acende um cigarro. Escuta Cazuza. Vai a cozinha e pega a vassoura. Vem varrendo o dinheiro espalhado no chão. Desiste. Senta na poltrona. Pega o telefone e liga pra Leonor).


Lídia – Alô? Oi Leonor. É Lídia. Está no pronto socorro? É verdade, você tem plantão essa noite! Deixa dizer, você não vai acreditar. O Moscou voltou! Ih, você não imagina a encrenca em que ele se meteu. Estou fora de órbita. Não vejo a hora de te contar o tamanho da novidade. Não, não, Moscou não vai grilar. Venha para casa, assim que puder. Está bem, o dever te chama. Tchau, minha querida. Um beijo. (Na cozinha, Lídia arruma a mesa. Pratos e talheres. O litro de uísque. Ajeita os copos e gelo).


Moscou – (Abre a porta; traz a pizza e sacola com latinhas de cervejas. Dança. Deixa a pizza na mesa. Põe as cervejas na geladeira. Separa duas. Passa a mão na bunda de Lídia, que está limpando a pia. Zomba. Volta pra sala e abaixa o som. Retorna à cozinha) Uau! Uau! Grana, monei! Dei vinte reais de gorjeta pro garçom gordinho que foi legal com a gente, daquela vez, quando faltou a merreca pra pagar a conta. (Moscou abre o litro de uísque) Os ouros chamam atenção pra cacete! O pessoal sente a pegada de quem está montado na bufunfa. Todos notaram minha presença. Maior barato. Maior respeito!


Lídia - (Corta a pizza) Coragem sua sair com a corrente, o relógio e as pulseiras. Ué, perdeu o medo ser assaltado?


Moscou – (Tira a jaqueta e põe nas costas da cadeira. Pega a arma da cintura. Gira entre os dedos) Nunca mais! Infeliz de quem tentar...


Lídia – Você está armado? Moscou, por favor, guarde isso no armário!


Moscou - (Serve-se de uísque) Cagando, ninguém me pega mais. “Todo aquele que possui coisas que não precisa, é um ladrão!” Mahatma Gandi. Um brinde a Mahatma Gandi. Um brinde a você, Lídia, meu maior tesouro. (Brindam) Um salve, Moscou, o ladrão, ator de seus próprios enredos. A nossa saúde! A não violência se fosse possível. (Anda. Revólver em punho. Entreolha janela da sala e olho mágico) “Se matamos uma só pessoa somos assassinos. Se matamos milhões de pessoas celebram-nos como heróis. Felicitam-se os que inventam bombas para matar mulheres e crianças. Só se consegue ter êxito neste mundo fazendo as coisas em grande escala...”. Grande Chaplin, grande Chaplin, o mundo continua um cinema mudo e surdo às grandes verdades. O que já foi escrito e dito em prol da raça humana não é brincadeira. Não existe crédito, não existe escuta. O homem continua caminhando nos seus extremos. (Na cozinha) É um perigo, Lídia. É um perigo, Li.


Lídia - Come a pizza senão esfria! (Moscou no banheiro) O que você está procurando?


Moscou – (Voltando) É preciso estar atento, sempre atento. Os grilos ecoam. Os grilos ecoam. (Moscou põe a arma sobre a geladeira e lava as mãos na pia)


Lídia - A cerveja está uma delícia. Grilos, em plena 9 de julho? Está ouvindo coisas, Moscou?


Moscou - (Pega a pizza com a mão) Bosta de grilo. Falei que queria azeitona preta, caralho! (Atira a azeitona verde no lixo) Orgulha-se de quê, o brasileiro? Da seleção canarinho? (Morde a pizza. Fala comendo) Ayrton Senna? Pelé? Do Guga? Do Roberto Carlos? O que é ser brasileiro? (Senta e põe cerveja no copo) E a nossa cultura popular, e os anônimos? (Bebe) Foda-se o brasileirismo! Educação, trabalho, produção inteligente, rango farto na mesa do povo. (Come) É distribuição de renda que eu quero ver. Vê se eles têm coragem! Cadê a brasilidade? A cultura padece e eu quero viver o Brasil sadio. Brasilidade, morô? (Abocanha mais um pedaço)


Lídia – Moscou, o Brasil está mudando.


Moscou – (De boca cheia) Mudando? Porra de gerúndio É o cúmulo do otimismo. (Levanta-se) Tem grilo, aqui! Tem grilo, aqui! (Abre o gabinete da pia e procura) “Enquanto houver um brasileiro sem pão e sem trabalho, toda sinceridade será falsa!” Você sabe quem disse a frase?


Lídia - (Mastigando, assustada) A marguerita está um biscoito! Hum, essa veio bem caprichada!!!


Moscou – (Pela casa como se procurasse alguém) Muitos achavam que o homem ia ser o salvador da nação, depois de 20 anos de ditadura militar. O presidente indireto, Tancredo Neves, amore! Ele viveu 50 anos de benesses da política nacional e quando chegou nesta brilhante e conclusiva e inócua frase, o homem morreu. Morreu antes de vestir a faixa presidencial.


Lídia – (Comendo. Fala alto) Eu adoro quando a mussarela está assim derretida. Onde você está? O que você está fazendo?


Moscou – (No quarto, abre a porta do guarda-roupa. Sempre vigiando, volta pra sala) Cessaram os tropéis e veio a ditamocracia. O plano cruzado e a magnânima obra do escritor. O homem da Academia de Letras, que, ao invés de encontrar meios de acabar com o analfabetismo, deu aos milhões de analfabetos o direito do voto obrigatório. Genial! A proclamada democracia que nos obriga a votar. (Retorna a cozinha)


Lídia - (Limpando a boca) Político só faz pra ele e família. O seu problema é não se conformar. Quer, por favor, guardar essa arma! (Bebe cerveja) Quem está no poder manobra em favor da minoria. A democracia faz alardes, mas, para viver melhor, é preciso não olhar dos lados. Vou ser gulosa e comer mais um pedacinho. (Corta) Não vai comer mais?


Moscou – Psiu! Está escutando? Não? (Baixo) Os grilos dão o alerta. (Põe o revólver sobre a mesa, senta) Dentro de mim é como se houvesse compulsiva retórica. Imagens me vêm à mente, rápidas fotos atemporais. Agora mesmo revi um fato intenso. No retorno do referendo popular, em 1989, o poder global mostrou sua força e fez surgir na telinha o caçador de marajás. Que, no primeiro capitulo da novela, tomou o dinheiro dos incautos eleitores, sob o pretexto de acabar com a inflação. Oh! Povinho ordeiro, cumpridor das regras do jogo, que tudo aceita. (Bebe) Até tornar público que o único tiro pra derrubar o tigre inflacionário tinha outro endereço. (Faz como se cheira) Nada mais que um golpe para satisfazer o regozijo de uma cúpula inadequada: ávida de poder e grana. (Torna a se levantar com o revólver na mão) O colorido presidente caçador se viu caçado em nome da justiça pintada nas caras, porque já era interesse de outra rapinagem...


Lídia - Essa pizzaria é a melhor da Bela Vista. A massa nem grossa nem fina. (Comendo) O melhor a fazer é esquecer, e já faz tanto tempo isso!


Moscou - (De revólver em punho retoma sua busca paranóica) Com topete de vice, o conquistador assume a vaga suprema. Relançar o fusquinha e se deixar fotografar no carnaval ao lado da bela modelo, sem calcinha, mostrando a vagina cabeluda e reluzente, é o maior feito do seguinte franco presidente. (Na estante puxa uns livros, que caem) Buceta! (Procura algo atrás da caixa de som) Preparado o pão de queijo recheado com a Unidade Real de Valor, a URV, lembra? (Pega os livros no chão e repõe no lugar) Os acadêmicos cheios de boas intenções, entre aspas, vencem as eleições e armam o plano real. A inflação, a grande inimiga, foi contida para o bem da nação. Estagnaram os anseios da massa. A política do frango 1 real. Propaga-se aparente estabilidade O catedrático goza reeleição. (Olha embaixo do tapete) Não de graça. Uma afronta à constituição. (Zombando) Pior, bancaram, corromperam os votos dos nobres edis pra testemunharem o sim! (Percorre assustado os cantos da sala) Foram 8 anos de governo e pensa bem, o que melhorou? Ora! As estatísticas mostram progresso, superávit e o escambau. Eles vangloriam-se dos méritos. O ex-mandatário foi condecorado e elogiado no primeiro mundo por sua honrosa missão. Mas, na prática, o que melhorou? O que melhorou para nós? A modernidade, o liberalismo, o neoliberalismo. Farsas! As privatizações enganosas! Venderam o país e o que melhorou pra nós?


Lídia – (Pondo-se em pé) Moscou, para de andar pela casa com esse revólver! Você me deixa nervosa. Que tanto procura e olha, pelo amor de Deus? Eu estou comendo! Que paranóia é essa? Me chega do nada trazendo milhões de reais, jóias e a promessa de uma vida excitante e perigosa. Uma pausa, Moscou. Esquece as tormentas, e crie uma nova alternativa. (Lídia retorna e senta, bebe)


Moscou – (Moscou abre, olha, e fecha a geladeira) Esqueçam o que escrevi? Esquecer o que li e vivi, nunca, jamais! No ar, para o mundo inteiro assistir veio o momento mais sublime da nossa democracia. “A esperança venceu o medo”. O operário no poder. O sapo barbudo tomou conta da lagoa. A fome zero foi o refrão popular! Votei no grilo. Luiz Inácio Lula da Silva ficou malandro nas ideias. E, ao fim de dois mandatos, os escândalos, os conchavos e as mamatas continuam iguais. (Põe o revólver na cintura) “O que é bom, a gente mostra. O que é ruim, a gente esconde!” O efeito Ricupero é uma constante na lei do poder. (Bebe) É a força do sistema. É o pensamento vigente. O capital faz suas vítimas. O avanço tecnológico deflagra a luta pelo domínio absoluto. Os americanos do norte ditam as regras do globo. “O homem é o que come!” Tá ligada? Pode crer, “o homem é o que come”. Nessa, o filósofo matou a pau! “O homem é o que come”! (Ri) Dilma, mulher, a presidência veste saia, é um avanço. Tens minha simpatia, pré sal no descrédito. Político porra nenhuma! Óde aos política. Óde aos políticos! Fu, fora! Serra, Kassab, Ai de mim, e todos, e todos genuínos fernandes e cabaceiras. Ódio aos políticos!


Lídia – A cordialidade que você quer entre as pessoas não vai existir nunca.


Moscou - Cordialidade? Eu quero um patamar. Eu quero justiça. O direito, tá ligada? A felicidade do indivíduo depende do bem estar da coletividade.


Lídia - A justa reivindicação sempre acaba em pizza.


Moscou – O inconformismo recheia minha pizza. (Come) “Mas como é que eu posso comer e beber se a comida que eu como, eu tiro de quem tem fome. Se o copo d’água que eu bebo faz falta a quem tem sede. Mas, apesar disso, eu continuo comendo e bebendo”. Um brinde a Brecht, grande dramaturgo. Tremenda humana figura. Um salve a você, Lídia, formosa mulher. Um brinde Moscou, o dramaturgo ladrão. Que só agora descobriu a sua verdadeira personagem. Viva! (Bebe)


Lídia - Chega de comer. Comi demais. Bela pizza! O problema, Moscou, é a veracidade da sua representação.


Moscou – Não consigo mais conviver com a mentira.


Lídia - (Indo ao banheiro escovar os dentes) Você tomou uma decisão muito séria.


Moscou – (Pega o revólver) A idéia amadureceu. Tava no ponto de colher.


Lídia – E, em mim, você pensou, Moscou?


Moscou - (Apontando a arma a esmo) Estou seguindo uma trilha e no caminho a fonte cristalina. Porém, para beber da água, um labirinto de espinhos. Quer seguir viagem comigo? Li, eu gosto de você, pode crer! Dentro do espaço que a minha cabeça concede ao amor, você é a dona do pedaço.


Lídia – (Voltando) Você fala de um jeito estranho, que me faz desconfiar. Vou lavar a louça. Quer comer mais?


Moscou – Não. (Copo e o revólver nas mãos)


Lídia - (Lídia lava pratos e talheres) Não se pode deixar nada de comida pra fora. Deu pra surgir uma enormidade de formiguinhas. Elas brotam das paredes, dos azulejos, o apartamento está infestado delas.


Moscou - São os grilos. Os grilos! (Na sala) Pensamentos maquiavélicos, o cruel e piedoso. Daqui pra frente, só Deus sabe.


Lídia – (Da pia) O que você está dizendo?


Moscou – (Pela sala, desconfiado) De nada adiantam novas leis, novos governantes, novas eleições, se o que vigora é o adágio mesquinho.


Lídia – (Enxugando as mãos) Moscou, chega de tanta gastura. Guarda esse revólver. Que aflição, meu Deus!


Moscou – (Procurando) Eu vivo em função das minhas ideias, dos castelos e sonhos que se reproduzem em mim. (Aponta o revólver) Me tornei um marginal, um marginal da sociedade.


Lídia - (Guarda a sobra de pizza no forno. Traz o copo de cerveja) O que é isso, Moscou? Não fale assim! Não age assim!


Moscou - (Continua a busca) Graças, ao bom Senhor, não vou morrer pagão. Tá limpo! A vida dá, a vida tira. A vida é boa, a vida é ruim. Nada sei do amanhã. Sinto um clarão se agigantando. Minha consciência manda. Meu sentimento exige. Esse furúnculo quero apertar até o fim. Esse carnegão eu quero extrair.


Lídia – (Da porta da cozinha) Com tanto dinheiro e você fica aí se martirizando. Desse jeito, o que vai resolver essa grana toda?


Moscou - Que visão deslumbrante! Ó dinheirama, sinta o aroma! Sente a fragrância da posse!


Lídia – (Na sala, acende o cigarro) Moscou é preciso ter muito cuidado. A trairagem anda solta. Reza um pouco, pede lucidez. Reveja sua atitude. Você matou um cara. Roubou todo esse dinheiro e está sendo procurado. O que vai acontecer se a polícia chegar aqui, de repente? Moscou, eu preciso me sintonizar. Agora não é o Moscou mentalizando no silêncio de nosso quarto as mais mirabolantes encenações. Moscou, quem é Moscou, agora? (Lídia passa a juntar o dinheiro espalhado)


Moscou - A minha atitude significa mais que a dinheirama roubada. (Leva as duas malas ao quarto. Espalha dinheiro na cama. Lídia o segue) Dei uma alfinetada no sistema e ele nem sentiu. Quero fazer um rombo. Quando eu penso nas proezas do bicho homem. Sua evolução. O domínio da natureza. As conquistas no espaço sideral. O consumismo, a destruição da camada de ozônio, o aquecimento da Terra. (Entre assustado e ameaçador. Revólver na mão) O vírus da moralidade, o HIV desafiando a medicina. E a gripe do frango e a gripe suína? O vírus em mutação? O terceiro e quarto Reich, intermináveis ecos ressoando ora cá, ora lá. Apartheid, segregação, preconceitos e discriminações. A bandeira do capitalismo interagindo a discordância; em nome da paz. Onze de setembro, Tio Sam versus Bin Ladem é apenas mais uma página em que releio as mesmas falsas verdades. (Balança as pulseiras no braço) Os grilos, os grilos me dizem: vai roubar, Moscou! Não tema, atinja o esplendor. Vai roubar, Moscou. É o caminho do contrário. É a voz do EU e sua matriz ambígua. É o EU ladrão sobrepondo-se ao Moscou teatrólogo. É a lei Descartiana que nos obriga a contribuir tanto quanto em nós cabe para o bem geral de todos os homens. Aiaiai-uiuiui! Acabei com as incertezas do futuro. Vou voltar as minhas raízes. Periferia, aqui vamos nós!


Lídia – (Senta na beira da cama) Já não sei mais o que pensar. Onde você quer chegar, Moscou?


Moscou - Eu vi uma casinha legal. (Relembra) Fica no fundo de um terreno grandão. Tem amoreira, pé de ameixas e um monte de plantas. É pequena, mas aconchegante. Se você conseguir engravidar e me der filhos, a gente constrói um sobrado. Nada de luxo para não chamar atenção. Tem um jardim incrível. Flores! Uma renca de flores perfumando todo o ambiente. E mais! Vamos ter muitos amigos. Muitas crianças, moleques me chamando de tio Moscou. Os parceiros, que nunca tive, estarão sempre por perto pra qualquer precisão. Poder jogar futebol na várzea. Frequentar os saraus da rapaziada. Sergio Vaz, Binho, Buzo, Vagnão, Elo da Corrente, tá me ouvindo bem? Marcelino Freire, Miró. (Girando o revólver) Vou instaurar o teatro do pavor. Você me deve, sociedade! Você me paga, me aguarde! As pessoas se apavoram quando veem um desses apontados pra cara. O instante derradeiro: vida e morte frente a frente.


Lídia - Veja bem, Moscou. Eu nasci na Consolação. Minha vida inteira morei no centro de São Paulo. Qual é a próxima surpresa? O que mais você me oferece nesta noite? Me trouxe dois vestidos caríssimos, jóias, e a inimaginável quantia em dinheiro. Estou transtornada com tantas notícias e palavras de sangue, e, ainda, quer me levar para morar na periferia? Guarda o revólver, pelo amor de Deus, senão o diabo atenta. Vamos deixar essa conversa para amanhã, com a cabeça mais relex. Chega por hoje, Moscou! Eu estou feliz e horrorizada ao mesmo tempo, meu Deus! (Começa a chorar)


Moscou - (Caindo em si) Não, não, minha querida, não chore. (Põe o revólver sobre a penteadeira) Estou dizendo tudo isso pra que você sinta firmeza em mim. Não fique assim. Meu tezão, meu tesouro. (Ajoelha e abraça Lídia) Clama a necessidade, eu preciso te amar! O amor é imperativo! (Cobre Lídia de beijos) Te amo, te amo. Tá mais calminha, tá? Pronto, me dá um sorriso bonito. Assim, linda! Te adoro! Te adoro! Te amo, te amo, te amo. (Levanta) Fora camisa. Fora sapato. Vamos dar um mergulho no mar da fortuna! Fora calça (De cuecas pega no pau) É hoje. É hoje que a gente tira o atraso. Fica pelada, Lídia. Quero te ver nua rolando nesse rico acolchoado.


Lídia – (Tira o vestido) Me escute, Moscou, deixe de se importar com os problemas dos outros. Você roubou, provou que é esperto. Sossega! Veja quanto dinheiro. Entenda, quero te amar num canto só nosso. Sem ninguém atravessando nossas vidas. No teu castelo quero ser a principal personagem. Sei quanto existe de verdade em tudo que você diz. Quero entrar na mirabolância do teu pensamento. Estou insegura. Conhecendo, como te conheço, imagino a distância que a fantasia te levou. Tenho muito medo, Moscou!


Moscou - (Solta notas sobre a cabeça de Lídia e a faz girar) Iluda-se, Lídia! Iluda-se. Fora grilo. “O homem é o que come”, pode crer! “O homem é o que come”. (Pega o copo de uísque em cima da penteadeira) Neste momento supremo em que nossos conflitos dão lugar a nobres sentimentos. Deslumbro teu corpo, lindo corpo. (Beijando-a) Invoco o poeta, mais que poeta: Oswald de Andrade! Se, ele, presenciasse esse instante, através dos olhos meus, assim diria: “Só a Antropofagia nos une. Socialmente! Economicamente! Filosoficamente, Sexualmente!” Um brinde ao poeta! Socialmente... Economicamente... Filosoficamente, Sexualmente... Só a Antropofagia nos une... Um brinde ao amor... (Tira a calcinha de Lídia) Filosoficamente! Socialmente... Economicamente... Filosoficamente... Sexualmente... Só a Antropofagia nos une...”


Capítulo três


(Na sala, sentadas no sofá, Lídia e Leonor acompanham o noticiário na tv. Lídia veste camisola. Leonor enrolada na toalha, saída do banho)


Lídia – Desliga, Leonor. Não se fala em outra coisa!


Leonor – (Desliga tv) Será considerado o assalto do século.


Lídia – Quase dois bilhões de reais.


Leonor – Um bando audacioso. Encontraram o carro forte queimado numa travessa da marginal. (Lixa as unhas)


Lídia – (Do sofá) Deixaram o motorista amarrado num poste.


Leonor – O circuito interno do banco foi desligado. E as imagens do estacionamento não identificam ninguém.


Lídia – (Folha o jornal) Uma pista sempre fica. Sempre fica um rastro.


Leonor – O delegado suspeita de facilitação. É por aí que eles vão começar a investigar.


Lídia – E haja facilitação. O Moscou me contou. Estou muito preocupada.Tanto dinheiro em casa. Eu não sei com quem Moscou está envolvido. Se acontecer de alguém delatar. Se a polícia descobrir que ele está aqui? Imagine eu e você escrachadas no telejornal. É só o que nos falta.


Leonor – Moscou disse que vai embora, amanhã?


Lídia – (Fecha o jornal) E quer que eu vá junto. Não posso assumir uma situação dessa. Vai morar lá pras bandas do Campo Limpo. Um tal de Jardim não sei o quê. Nem metrô tem. É uma favela só. De uma pobreza! (Toca o telefone. Lídia atende) Alô. Oi Moscou. O que aconteceu? Não se preocupe. O dinheiro não vai sumir! Você vai se encontrar com o Samuel? É bom mesmo. Pague a dívida e agradeça por mim. É! Precisamos conversar, muito seriamente! Agora, eu sou cagona! Que bom, belo conceito.Tchau, até a volta. (Desliga) Não reconheço mais o Moscou. Que metamorfose na maneira de falar. Mas, ainda bem, que ele vai pagar o Samuel.


Leonor – Samuel? Não é aquele que tem ligado pra cá, ultimamente.


Lídia – É ele mesmo. Moscou e Samuel se conhecem desde a infância. Estudaram juntos. Fizeram escola de arte dramática e atuaram na mesma companhia. Você quer café?


Leonor – Só um gole, pra te acompanhar.


Lídia – Depois, Samuel resolveu fazer faculdade de Direito e lá conheceu uma moça de família rica. Paulistana tradicional. (Serve duas xícaras de café) Samuel não perdeu tempo. Se arranjou no casamento e foi dirigir uma das tantas fábricas do sogro. (Volta pra sala) Uma vez fomos visitá-lo. Você precisa ver que casa! Um luxo! A esposa um mimo. O Samuel emprestou vinte mil reais pro Moscou tocar um projeto, que, infelizmente, não deu certo.


Leonor – (Bebendo o café) Mas, como o Samuel foi parar na merda?


Lídia - (Acende um cigarro) O Samuel quebrou a cara ao se envolver com a filha de um funcionário, antigo da fábrica, e que era amigo de confiança do sogro. (Traga) A menina era menor de idade e rendeu o maior bafafá. Aliciamento de menor. Deu processo de pedofilia. O sogrão, com muita classe, deu um pé na bunda do Samuel e até arranjou um jeito de invalidar o casamento. A partir daí começou a peregrinação de Samuel. Bebidas, mulheres fáceis, e uma vida difícil cada vez mais em derrocada. Bom, os vinte mil que o Moscou vai devolver serve, ao menos, para amenizar um pouco a situação dele.


Leonor – (Sopra as unhas) Homem galinha tem que se foder. Mas, e você, Lídia, três anos vivendo com o Moscou e não percebeu o que ele é capaz?


Lídia – (No quarto) Você não conhece o Moscou. É de uma extravagância enorme nos pensamentos. Eu não dava mais atenção. Achava que era somente história. História de uma carreira frustrada. Eu, na verdade, antes do sumiço dele, já estava preparada para o ponto final, a separação. E o nosso reencontro só fortaleceu a minha decisão.


Leonor – (Carinhosa) Querida, voltar a ter você por perto vai ser tudo de bom. Melhor ainda se o Moscou recompensar sua dedicação. Afinal, você sustentou a casa a maior parte do tempo...


Lídia – Nada quero. É dinheiro roubado. Ainda, os vestidos e as jóias, eu vou guardar. Mas, esse dinheiro, eu juro, dane-se esse peso. Vamos alugar um ap e deixá-lo bem bonitinho. Esquecer o que passou e recomeçar a vida. (Senta na cama)


Leonor – Estou curiosa pra conhecer o homem dos 200 milhões. Tem que ter peito pra assumir esse risco. Tomei um susto quando cheguei. Tinha dinheiro espalhado pelo chão, na mesa, na cozinha. O sofá forrado. Gente, olha como está isso! (Joga notas)


Lídia – Falando em dinheiro. Vou aproveitar e zerar nossa dívida. (Conta) Eram mil e oitocentos reais. Vou te pagar dez mil. Você sabe o quanto sou agradecida por sua atitude.


Leonor – (Segura o rosto de Lídia) Pode contar comigo, Lídia, em qualquer situação.


Lídia - Quando nos separamos...


Leonor – Moscou foi o intrujão em nosso relacionamento.


Lídia – Desejava ter uma vida normal. Ser mulher, de um homem. Cuidar da casa, e ter filhos. Queria muito ter filhos. Mas eu não posso, fiz tratamento e nada de engravidar.


Leonor – (Acaricia os cabelos de Lídia) Conheço esse amor materno. Podemos adotar uma criança. Criar a maneira que a gente vê o mundo.


Lídia – (Encosta a cabeça no ombro de Leonor) Vida louca, essa. Sentadas sobre uma fortuna, juntas, depois de três anos, em situação totalmente contrária.


Leonor – Vamos refazer nosso sonho.


Lídia – (Pega e beija a mão de Leonor) Com fé em Deus e em nós, vamos sim.


Leonor - Tudo aconteceu de forma natural. Nos encontramos ao acaso. Nossas necessidades, também. (Beijam-se)


Lídia - Olha a bagunça desse quarto? (Levanta) Já é quase meio dia. Tenho que ir ao apartamento do seo Zé, o zelador, falar que o Moscou vai ocupar a vaga pra estacionar o carro.


Leonor – Vocês transaram em cima de toda essa grana? E qual foi a sensação? Temor ou fúria?


Lídia – (Tira a camisola, Está nua) Fechei meus olhos e me deixei possuir. Foi estranho, estive distante. Pensei várias vezes em você.


Leonor – (Dá um leve beijo no seio de Lídia) Transar num colchão revestido de milhões de reais é desejo de qualquer pessoa. Deita comigo. (Abraça Lídia) Deixa sentir um pouco, o devaneio louco...


Lídia – Não. Moscou pode chegar.


Leonor – Aí tudo se esclarece.


Lídia – Ele está paranóico! (Abre a gaveta da penteadeira e pega uma calcinha) Você é uma pessoa que eu tenho maior estima. (Veste) Aturou e preencheu minha carência de forma que nunca mais vou esquecer. Mas, agora, precisamos ter cuidado. Muito cuidado. (Beijam-se levemente. Lídia vai ao guarda-roupa: pega e veste um vestido) Leonor – Quanto a mim, eu não posso perder a oportunidade. (Mergulha sobre o dinheiro na cama)


Lídia – (Penteia o cabelo) Dá pra imaginar tudo isso? Parece que estou vivendo uma novela.


Leonor – (Na cama, com maços de dinheiro na mão) É meu amor, mas isto aqui é muito real...


Lídia – Que me causa medo, aflição. Dinheiro e revólver é dobradinha que atrai desgraça. (Vai pra sala)


Leonor – (Indo também) Você vai demorar?


Lídia – (Se dirigindo à porta) É rápido. Se bem que o seo Zé é atrapalhado. É o tempo de você pôr uma roupa, e vamos comprar alguma coisa pro almoço.


Leonor- Ou almoçamos num restaurante... ?


Lídia – (Saindo) Temos o Moscou em casa, lembra-se? Beijo!


Capítulo quatro


(Leonor põe o dinheiro recebido, na bolsa, em cima da mesa da sala . Circula. No quarto, abre o guarda-roupa. Calcinha, bermuda. Envolvente toalha cai. Está nua. Olha-se no espelho. Passa creme no corpo)


Moscou – (Abre a porta da sala e entra. Desconfiado. Cheira o ar. Saca o revólver sob a jaqueta. Fala baixo) Aqui tem grilo! Aqui tem grilo! (Quarto. Leonor, de costas, não vê Moscou. Ele salta em cima da cama. De arma em punho) Mãos pra cabeça!


Leonor – (Leonor grita) Ahhhhh! (Se cobre com a tolha)


Moscou - Mãos pra cabeça, eu tô falando! (Leonor solta toalha) E eu pensando no grilo e tem grelo na parada! Desembucha, quem é você? O que faz na minha alcova?


Leonor – Você é Moscou?


Moscou – Em dinheiro, revólver e pinto. (Lambe o cano do revólver)


Leonor – Eu sou Leonor, amiga da Lídia!


Moscou – (Salta da cama e gira em torno de Leonor) Eu sei quem você é! (Cheira) Onde está Lídia?


Leonor – (Se enrola na toalha) Foi ao apartamento do zelador.


Moscou – (Estereotipa o malandro) Caiu na teia é abate! Peladinha! E ao lado do meu dinheiro? É abate! Tem mais alguém na goma? (Gira o revólver)


Leonor – Não! Não tem ninguém. Prazer em conhecê-lo, Moscou. Vou ao banheiro me vestir.


Moscou – (Obstrui passagem) A circunstância é estranhamente interessante. Prazer em conhecê-la, baby! (Beija mão de Leonor)


Leonor – (Esquivando-se) Tua chegada me causou calafrios.


Moscou – (Espremendo) Todos os momentos são sublimes. Eu quero aproveitá-los. Me responda, baby, você ficou morando aqui o tempo todo de meu espetacular sumiço?


Leonor – Faz uns dois meses.


Moscou - (Seguindo) E tomavam banho, juntas? Todas as noites? E dormiam peladinhas?


Leonor – O banho, não direi todas as noites, sempre que possível. Mas, dormir nuas, com certeza, a maior parte do tempo.


Moscou – (Empurra o sofá. Aponta a arma) Aqui tem grilo, aqui! tem grilo! Duplo grelo. Duplo grelo! Peladinhas? Estou tezudo! (Lambe o cano do revólver) Quando eu conheci a Lídia, vocês dividiam um ap, né?


Leonor – (Da cozinha) A Lídia não te contou a história?


Moscou – Aí, ô baby! Quem está com o revólver engatilhado e pau duro, sou eu. Satisfaça minha curiosidade. O que a Lídia falou, não interessa. Estou perguntando, como é o relacionamento de vocês?


Leonor – (Voltando-se) Sempre foi e será de muito respeito, amizade, e porque não amor?


Moscou – Você chupou minha mulher?


Leonor – Grosseiramente fútil e não é por aí... (Vira)


Moscou – Espera aí! Eu não terminei! (Leonor para) Desculpe a indelicadeza, baby. Uma coisa é certa: a cumplicidade entre vocês existe e está sob minha desconfiança. Tem muito dinheiro em jogo e meu sucesso corre risco.


Leonor – Como assim, explique melhor.


Moscou – Você entrou no círculo de fogo, baby. Sabe demais. Falou com alguém? Alguém mais sabe do valor de minha obra? Se alguma informação vazou deste ap, considere-se morta! (Lambe o cano do revólver)


Leonor – Quer me apavorar? O que é isso, uma ameaça? Lógico, estranhei, um monte de dinheiro esparramado pela casa. Não falei com ninguém! Não sei e nem quero saber de nada. Se eu soubesse do ocorrido, não teria vindo.


Moscou – Vamos pensar e analisar. (Gira o revólver) Tem grilo, aqui. Aqui tem grilo. (Na mesa da cozinha pega o uísque e serve-se)


Leonor – Por favor, vou me trocar. Estou quase despida, e, pode ser uma situação embaraçosa, se Lídia voltar e me encontrar assim.


Moscou – (Ri) Só mais um plá, baby. (Leonor na porta do banheiro) Quando optei pelo palco deixei os embaraços pra trás. Deus criou o homem, ou o homem criou o Deus que o criou? A parábola, baby. Não entende onde quero chegar? (Acaricia o braço de Leonor com o revólver) A mosca caiu na teia. Já era. Aranha comeu. Baby não é mosca. Baby é aranha que invadiu meu calabouço. Eu sou o cavalo que gosta de comer aranha. (Relincha como cavalo) Esteja pronta pro abate, baby! Moscou não mosca, cata! (Tenta passar a mão entre as pernas de Leonor. Ela se esquiva e fecha a porta) Gostosa! Você está no abate, baby. (Ensandecido) O cavalo quer comer aranha! (Bebe do copo de uisque) É brincadeirinha, baby, eu sou um cara legal! (Leonor se veste. Moscou ao quarto. Revólver na cintura. Pega uma mala de dinheiro e leva pra sala. Recolhe dinheiro. Desconfia da bolsa de Leonor. Abre e encontra o maço de notas) Filhas da puta! Aqui tem grilo! Aqui tem grilo! Chegou a hora de partir. E sem deixar testemunhas! (Ameaçador. Saca a arma. Ouve barulho de chave abrindo a porta da sala. Rápido, se esconde atrás. Lídia entra. Moscou de arma em punho)


Lídia – (Assustada) Moscou, meu coração não aguenta! Pra que isso?


Moscou – Nunca é sabido o próximo episódio. Meu segredo violado. Onde você estava?


Lídia – Fui falar com o seo Zé, a nossa vaga no estacionamento...


Moscou – Porra de vaga nenhuma. (Fudido) Tenho de dar linha na pipa. Minha segurança foi quebrada. Quem mais sabe que eu estou aqui?


Lídia –Me dá um fôlego, me dá! Eu, Leonor, o zelador, sei lá quem mais sabe! (Na cozinha enche o copo de água) Pelo amor de Deus, Moscou. Suma da minha vida, de uma vez por todas! (Bebe) Cadê Leonor? Cadê a Leonor?


Moscou – Histerismo não é seu forte. Preocupada com a amiguinha, Lídia? Ela está bem, somente um pouco abalada, talvez.


Lídia – O que você fez com ela?


Moscou – Eu, nada. Sou incapaz de ferir uma flor.


Lídia – Onde está Leonor?


Moscou – A aranha correu pro banheiro. O cavalo ficou de fora.


Lídia – Que palavras são essas? Pare de lamber esse revólver! Leonor! ( No banheiro Leonor se maquiando)


Leonor – Já vou sair.


Moscou – Ela me contou tudo a saber.


Lídia – Contou o quê?


Moscou – Meu leito foi manchado. Manchou-o, a traição.


Lídia – Pare de representar! Eu e Leonor somos apenas ótimas amigas.


Moscou – Aqui, no meu pau! Chega de mentiras. (Na bolsa de Leonor retira maços de notas) Tua amiga é uma tremenda ladra. E, quando ela sair do banheiro, prepare-se pra cena de sangue!


Lídia – Não! Fui eu que dei o dinheiro. Eu devia à Leonor. Eu te falei!


Moscou – Falou que eram mil e poucos reais. Aqui tem dez vezes mais. Que porra?


Lídia – Leonor me ajudou tanto. Achei que era merecido retribuir. Entenda, Moscou. Ela não tem culpa. Fui eu que dei...


Moscou – (Bate na mesa) Porra! Além do meu dinheiro, você deu mais o quê?


Lídia – O que você quer dizer?


Moscou – Não se faça de inocente. Conte-me dos beijos e abraços. Das noites de carinhos em nossa própria cama. Do roça-roça, lambe-lambe, quem chupa quem?


Lídia – Maldito! (Arremessa um vaso próximo. Moscou se esquiva. Lídia chora) Meu Deus, meu Deus, porquê, porquê?


Moscou – (Fala consigo) Por essa não esperava. Perdi o domínio do enredo e terei que cometer um crime passional? Vejamos. Amam-se na minha ausência. Meu retorno representa um estorvo. Mas, em vista de tanto dinheiro, o planejamento das amantes sofre mudança. O dinheiro transforma as pessoas. Transtorna as pessoas. De repente, o trágico sheiquispiriano. Algumas gotas de veneno no meu copo de uísque e o Moscou vai pro saco. E as amasias, em posse de minha fortuna, vão curtir adoidado. Buceta! Aqui tem grilo, aqui tem grilo!


Leonor – (Saída do banheiro) Vulgaridade é a carapuça que te serve, Moscou! Você é animal. Pare de maltratar Lídia! (Abraça Lídia)


Moscou – Eis a heroína que retorna em defesa da amada. Explicações se fazem necessárias. Desembuchem! O que vocês planejam? (Toca a campainha. Moscou, de revólver em punho, no olho mágico) Cacete! Porra! (Entreabre) Que foi, seo Zé? O quê? Meu carro tá na vaga de quem? Manda, ele, colocar noutra vaga. O síndico tá brabo? Porra! Tá bom, tá bom. Já vou descer. (Fecha) Caralho! (Lídia e Leonor estão sentadas no sofá. Moscou vai à cozinha, põe o revólver sobre a mesa. Cheira a bebida e joga na pia. Lava o copo e torna colocar uísque. Bebe. Volta) Uma pausa aos nossos conflitos. Mantenham-se calmas que havemos de achar uma solução. Trágica ou romântica? Pagar comédia, nunca! Deus criou o homem, ou o homem criou o Deus que o criou? Aqui tem grilo, aqui tem grilo... (Sai)


Capítulo cinco


(Lídia se levanta do sofá. Leonor se mantém sentada)


Lídia – Que horror! O que eu posso fazer diante dessa louca narrativa? Acende o cigarro)


Leonor – Moscou ensandeceu. Precisamos reagir.


Lídia – Gostaria de saber o quanto de verdade existe nessa farsa.


Leonor – Te passou pela cabeça ligar pra polícia?


Lídia – Dedurismo é a mais vil das traições. Não, nem pensar!


Leonor – Vamos ficar passivas e esperando o pior?


Lídia – (Abraçando-a) Não sei, Leonor. Pega um pouco de uísque com gelo, por favor. Estou precisando...


Leonor – O Moscou com aquele revólver o tempo todo na mão, lambendo o cano, é aterrorizante! Ele falou em me matar! Lídia, esse dinheiro todo é tentador. Mas, pense, aproveitamos a deixa e vamos embora enquanto é tempo.


Lídia – Fugirmos como duas galinhas assustadas? Não! Tem de haver uma solução lógica. E o vestido chiquérrimo e as jóias que o Moscou me deu? Não são uma prova de amor? Ele está com o orgulho ferido. Em sua imaginação, eu o trai. (Indo a janela da sala)


Leonor – Perceba, Lídia, que a situação tomou contorno extraordinário. O que está feito? Está feito. Vivemos dois meses de cumplicidade. Nesse tempo, Moscou assaltou e matou, e não há como mudar nada... (Ao servir uísque nota o revólver na mesa. Bebe. Com o copo e a arma em punho retorna à sala)


Lídia – (Olhando entre a cortina) É preciso que ele entenda e nos aceite como somos. Eu o amei e, de certa forma, amo Moscou, ainda. Juntas havemos de conquistar


Moscou. (Vira e vê Leonor com o revólver)


Leonor – O Moscou, o Moscou esqueceu o revólver na mesa da cozinha...


Lídia – Abaixe essa arma.


Leonor – (Mantém o revólver em punho) Você não percebe, Lídia. Agora podemos dominar Moscou!


Lídia – Leonor, em que está pensando?


Leonor – (Entrega o copo a Lídia) Matar Moscou e ficarmos com o dinheiro.


Lídia – (Bebe num gole) Não! Leonor, por Deus, maldito dinheiro! Fala em matar, tirar uma vida, como se fosse algo banal.


Leonor – Na minha profissão, Lidia, todos os dias vejo gente esfaqueada, baleada, morrendo a mingua. Não me importo mais.


Lídia – (Abraça Leonor) Importa-se, sim, minha querida, eu sei que você sofre com os desafortunados atendidos no hospital. Relaxa. (Acaricia Leonor) Essa compulsão é fruto do estresse que Moscou nos trouxe. (Pega na mão de Leonor e tira o revólver com cuidado) Nosso sentimento é verdadeiro. (Beija-a) Vou colocar o revólver na estante de livros. Deixemos a tentação em posse do demo. Leonor, sinto que nada de mal vai nos acontecer. Temos de ter coragem e enfrentar a situação, juntas. A escrita pode ser mudada. Moscou não é este que se apresenta. (Ruído de chave na porta. Moscou é projetado com um golpe. Cai. Samuel aparece de revólver à mão. Lídia em socorro de Moscou. Leonor recua)


Lídia – Moscou! O que significa isso, Samuel?


Capítulo seis


(Lídia ajuda Moscou a erguer-se. Samuel fecha a porta e mantém a arma apontada. Leonor encosta-se à estante)


Samuel – Surpresa, Lídia? Você aí, boneca! Venha pra frente. Coloque as mãos em cima da mesa. Por essa você não esperava, né Moscou? Cadê seu revólver?


Moscou – (Passa a mão no local ferido pela pancada) Você levou sorte em me pegar cagando. Deixei o berro dentro do carro. (Olha para Lídia. Lídia gira os olhos pra estante)


Samuel – Tem outra arma na casa, Lídia?


Lídia – Não, não tem.


Samuel – (Apontando pra Leonor) E você quem é?


Leonor – Eu sou Leonor, amiga de Lídia.


Samuel - Estou pasmo! (Vai até a mala e mexe no dinheiro. Da porta olha para o interior do quarto) Temos uma bela fortuna aqui. Que intuição a minha.


Moscou – (Dá um passo à frente) Filho da puta!


Samuel – Nem mais um movimento, senão estouro os teus miolos, agora. Mãos pra cabeça, Moscou! (Aponta. Moscou volta ao lado de Lídia)


Lídia – O que aconteceu, Moscou? Samuel! Exijo uma explicação.


Moscou – Eu falei. Aqui tem grilo. Aqui tem grilo. Fui ser honesto. Pagar o que devia. E tomei nas costas.


Samuel – (Ri) De manhã, quando Moscou foi saldar a velha dívida. No carro, ele abriu uma pasta e começou a contar nota por nota. Vinte mil reais e ali tinha muito mais. De rolex no pulso. Corrente pesada no pescoço. Pulseiras cintilantes. (Ameaça Moscou com o revólver) Pensei. Como um cara que me deve a tanto tempo, fudido, vivendo as custas da mulher, ressurge completamente transformado, super excitado, carregado no dinheiro e ostentando ouro? E, ainda, de revólver na cintura? (Pega dinheiro em cima da mesa. Cheira) Não foi difícil imaginar. O noticiário só fala do grande e misterioso assalto. E, o Moscou, desta vez, me surpreendeu e realizou o espetacular ato.


Moscou – É o zóio maior que a cara, Lídia. Samuel premeditou esse golpe traiçoeiro, rapidamente. Assim que eu vim embora, ele pôs o plano em prática.


Leonor – É, Moscou, você ouviu grilo onde não tinha e esqueceu de guardar o rabo.


Samuel – Não podia deixar escapar uma oportunidade dessa. Chance única de voltar a viver com ostentação. E, depois, eu sei dos objetivos que levaram o Moscou a tal conduta. É um sacrilégio. Investir e construir teatro na periferia? Dramaturgo social? Somente uma mente lunática é capaz de conceber tamanho disparate.


Leonor – Aí estão os homens, Lídia. Em ser submissa a eles, nunca.


Lídia – E o que vai ser de nós?


Samuel – Não se preocupe. Você e Leonor não correm risco de morte. Basta seguir a receita da sobrevivência. Tenho um grand finale arquitetado na mente. Mas, o Moscou, pra meu regozijo, será deletado do contexto.


Moscou – O veneno veio à tona. A concorrência em ser melhor do que eu, somente adormeceu com o tempo. Manifestou-se na disputa da primeira namorada. As notas no boletim, na concorrência por melhores papéis. Nos projetos, sempre um som discorde acompanhando. O sentia, em não desfazer a amizade, eu relevei. E bastou a oportunidade ideal surgir e já a ferocidade põe-se a prova, desta vez de forma covarde e vil.


Samuel – O ladrão faz a ocasião ou a ocasião faz o ladrão? Moscou, o Robin Hood da periferia. Ainda bem que apareci para que tal blasfêmia não se consumasse. Tais pensamentos tornam o suicídio morte honrosa. Dinheiro serve a quem tem prazer refinado. (Põe o revólver na cara de Moscou) Moscou, agora, a melhor parte do espetáculo! O beijo na face! A divina santa ceia! Você sabe. Quantas vezes eu te falei das minhas taras? Manter relações sexuais com duas mulheres é a melhor delas. Portanto, eu gostaria que as meninas tirassem as roupas, peça por peça.


Lídia – Você não vai se atrever?


Leonor – Além de pedófilo, é estrupador?


Samuel - Façam o que eu mando, se vocês quiserem ter alguma adição nesta jornada. Nuas, eu as quero nuas! Eu dirijo a cena. O diretor agora sou eu e assumo total responsabilidade. Eu às quero nuas! Entenda, Leonor, é apenas uma permuta de favores. Em troca da vida de vocês, que, nesse momento, me pertence, eu quero vê-las brincando, nuasinhas. E, o que é melhor, dar uma despedida de honra ao meu amigo Moscou. Uma soberba visão. Duas delícias prontas para o amor e eu com o pinto duro. Esta é a cena que você irá levar pela eternidade, Moscou!


Moscou – Viado! Eu pensei que te conhecia! Sabia da íntima diferença, mas não o grau de perversidade. Bunda-mole que eu sou! Vá em frente, eu quero degustar o fim do show.


Samuel – Para trás, Moscou. Mantenha a mão na cabeça. Fique próximo à estante e observe o privilégio. Aí está bem, diante da mira e do tiro fatal. (Moscou encosta na estante)


Lídia - (Tirando a roupa) Canalha! Você não passa de um canalha!


Samuel – Pode ficar brabinha. Não tem problema. Ver Lídia nua, em pelo, é um antigo desejo. Quantas punhetas em seu louvor. Desculpe, Moscou, quando emprestei o dinheiro foi por causa dela. Pensei em receber os juros correspondentes, de forma libidinosa. Por pouco, Lídia não mordeu a isca. Nossa, Leonor, você é uma puta mulherona. Estou excitado. Então, Moscou? Deu sopa e eu vou comer. (Ri) O maestro pede sintonia. Emoções nos gestos, meninas!


Leonor – (Estando nua) Quero ver quanto vamos levar nessa história toda?


Samuel – Façam o teatro que me apraz e serão recompensadas. Eu quero ver vocês atuantes! Moscou, lembra-se de nossos desafios em a Preparação do Ator? Acho que o capítulo “Fé e Sentimento da Verdade” fodeu a sua cabeça. Que ironia, eu estou colocando em ação o “Super Objetivo”. (Passa a mão no pau e comanda as ações. Elas obedecem) Leonor, envolva Lídia num forte abraço. Lídia fique atenta! Acaricie, Leonor. Veja, Moscou, os requintes da tua derradeira e mórbida viagem. Leve consigo a imagem do meu prazer. Aqui, quem fala é o ditador. Mais intensidade, eu quero ver a mão na bunda. Ação, muita ação. O dedo no grelo! Rebolem com tezão! Beija o bico rosado dos seios de Lídia, Leonor. Eu quero ver sentimento nas faces. Moscou, adeus! (Aponta o revólver com intenção de atirar) Que maravilha, Moscou. Você está se divertindo? É demais. Uma primazia. A santa ceia virou tremendo bacanal. Eu quero lamber os detalhes da escultura. Agora o momento esplendoroso. Tua derradeira visão. Meninas, se aproximem. Fiquem de joelhos e tirem meu pau pra fora. (Elas abaixam a calça e cueca de Samuel. Ele mira, pressiona o gatilho) Adeus, Moscou! Para você, um palco sem luz. É o apagar das luzes da ribalta! (Vai atirar)


Leonor - Ah! Olha o tamanho do pinto dele!


Lídia - Oh! O pau do Moscou é maior. Muito maior!


Samuel - Suas vacas! (Gira o revólver em direção a elas. Moscou aproveita o vacilo e pega o revólver na estante. Atira)


Moscou – Você é um péssimo diretor, Samuel. (Samuel baqueia) É dinheiro que você quer? É dinheiro que você quer? Chupa mais essa, otário! (Atira de novo e Samuel tomba morto)


Capítulo sete


(O corpo de Samuel estendido. Lídia e Leonor, nuas, de joelhos, se abraçam. Moscou anda de arma em riste)


Moscou – Se o homem criou o Deus que o criou? Criou também o diabo, à sua semelhança. O capeta tem nome e é precavido. Lúcifer! (Triunfante. O pé no peito de Samuel) O governo do povo, pelo povo e para o povo, esfola o povo! Democracia mentirosa! Nada é capaz de iluminar a cabeça dessa sociedade brasileira detentora do poder. (Volta) Porra! Buceta! Política do caralho! A ilusão é meu palco. Desiludido, sou meu próprio grilo! O meu próprio grilo! (Gira em torno de Lídia e Leonor) “Vemos, ouvimos, entendemos e pensamos diferentemente antes e depois de transpormos o limiar do subconsciente. Antes, temos sentimentos verossímeis; depois, sinceridade de emoções. A nossa liberdade deste lado do limiar é cercada pela razão e convenções; do lado de lá nossa liberdade é atrevida, voluntariosa, ativa, marchando sempre avante.” Eu o saúdo Stanislavsky. (Aponta o revólver) Vocês acham que lutar pela dignidade do povo é luta inglória? Minha ambição não se alimenta da miséria de meus conterrâneos. Está alinhada em nobres pensamentos, feito os grandes guerreiros. Chico Mendes, Chico Mendes, a terra pra quem trabalha! O país para quem produz! (Caminha à cozinha) É triste admitir o estado animalesco, volúpia de sangue que banha nossos dias. É um estado normal no homem? O sistema imposto pra gente existir, barganhar com a vida, é uma batalha dura e cruel. (Pega o litro de uísque) Mulheres, em pé, não as quero curvadas. Os pecados foram purgados, e vocês absolvidas. (Lídia e Leonor levantam-se) É a glória do dinheiro, se atenham ao episódio... (Elas jogam dinheiro pra cima) Moscou não mosca, cata! (Aprecia ambas nuas. Põe uísque nos copos) O medo é a maior fonte de lucro de nossa era. O holocausto é ação contínua. É o dinheiro que interessa! É só o dinheiro que interessa! (Pega um bolo de notas e arremessa) É dinheiro que você quer? É dinheiro?(Bebe) Paulo, Paulo, “O amor ao dinheiro é a raiz de todos os males”. (Brinca com o revólver) Ah, o poder, a bola da vez sou eu! Ah, mentiras, que sons e imagens guarda o emoldurado espelho? “O poeta tem a tarefa de levar aquilo que é mortal e isolado à vida infinita, o acaso ao legitimo. Ele tem uma tarefa profética”. Kafka! Luz e trevas, céu e inferno. (Elas o abraçam) Amo a vida, Lídia. Amo a vida, Leonor. (Pro morto Samuel) O homem é que come! Vários sentidos. Cego, tome! (Dinheiro ao ar. Beija-as. Serve os copos com bebida e deixa a arma na mesa) Um brinde. (Unem-se) Um brinde nesta noite memorável. Um brinde à liberdade de expressão, e a todos que lutam por ela. (Brindam e bebem. O deixam nu. Envolvem Moscou) Um salve à dramaturgia! Um brinde ao teatro; templo livre de todas emoções. Um brinde, Lídia, Leonor, o ápice final! (Lídia e Leonor o rodeiam) A minha crença: “Não conto gozar minha vida. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo”. (Elas jogam dinheiro sobre Moscou. Pegam os copos e bebem) Um brinde a poesia, poeta Pessoa, pois, em mim, agora, o grilo soa; é a verdade que me resta somente. Enraizado no homem sem claridade, o egoísmo, Lídia, o egoísmo, Leonor, o egoísmo é o grande câncer da humanidade! (Beijam-se. Jogam dinheiro) O egoísmo, enraizado no homem sem claridade, o egoísmo é o grande câncer da humanidade. (Leonor se posiciona atrás de Moscou. O excita) O egoísmo, enraizado no homem sem claridade, é o grande câncer da humanidade. (Leonor estica o braço e coloca o copo sobre a mesa. Próxima ao revólver, o pega) O egoísmo é o grande câncer da humanidade. (Lentamente mira entre as cabeças) É dinheiro que você quer?!


(Corte. A luz se apaga. Ouve-se um tiro)


Fim