quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Sarau Elo da Corrente na abertura da Bienal do Livro

A plateia no Estande da Fundação Volkswagen...

O Mapa da Poesia recebeu a missão da SPEL, São Paulo Estado de Leitores, para organizar 10 saraus no estande da Fundação Volkswagen, nesta 21º Bienal Internacional do Livro, pavilhão do Anhembi, no horário das 19h30 às 21h30.

No prazo entre os dias 12/8 e 22/8 tínhamos a chance de ocupar um espaço "sagrado" com a poética atual, urbana, revestida em sangue novo. Convidamos diversos coletivos literários que hoje recheiam o centro, sua periferia, e Grande São Paulo.

Arlequinal!

Em questão de um dia - graças a seriedade dos saraus existentes - preenchemos a grade pedida e ainda ocupamos o horário das 18 horas, em 12/08, para apresentação do Elo da Corrente, de Pirituba, que esteve complementada em seu entusiasmo com a chegada da co-irmã Poesia na Brasa, da Brasilândia.

O roteiro assim foi montado: Elo da Corrente, Poesia na Brasa, Escambo, Politeama, Poetas da Casa das Rosas, Récita Maloqueirista, Pavio da Cultura, Camarilha, Círculo Palmarino, Sarau da Ademar e Encontro de Utopias.

Chegado o dia da abertura e a bordo da Van seguiu a Lids, produtora cultural, para Pirituba. Tornou-se elo da estreia, de uma corrente que nos aprisiona e nos liberta a voz. A festa dos versos!

Ao final de prazerosa noite, onde até índios guaranis declamaram, conversei com poeta Michel, também protagonista dos encontros semanais do Elo da Corrente, às quintas-feiras, às 21h, no bar do Santista. O desenrole foi esse:

O poeta Michel durante apresentação no Sarau Poesia na Brasa, na Brasilândia...

P – Michel, como você vê o movimento poético na nossa periferia?

Michel – Salve Pé! Vejo que o movimento tem trazido uma força muito grande pras comunidades. Todas que hoje estão trabalhando a literatura, numa herança do rap, do samba, de outros movimentos que já existiram. A gente está buscando uma seqüência de grande auto-estima. De mostrar nossa capacidade artística e cultural. De se apropriar dos meios públicos e das produções também, criando editoras. Criando esses espaços que são os bares que até então eram vistos com olhos de preconceito, de doenças como o alcoolismo. A gente está transformando num lugar onde a comunidade pode se encontrar e comungar e celebrar a cultura. Isso a poesia tem possibilitado! Desde a semente que a Cooperifa plantou, com você, inclusive. É uma coisa que floresce em cada bar, hoje, em vários lugares. E pra gente tem sido a maior satisfação participar e somar nesse grande movimento.

P – Como surgiu o sarau Elo da Corrente, em que ano?

Michel – O Elo da Corrente surgiu em 2007. Em junho de 2007 a gente fez o primeiro sarau. As pessoas que organizam o Elo da Corrente participavam da rádio comunitária, da região de Pirituba, a Urbanos FM, que chegou a transmitir alguns saraus. Como a gente já tinha um conhecimento do movimento literário que tava acontecendo na periferia, que não é de hoje, tivemos contato com o trabalho da Cooperifa e criou-se então uma referência muito forte pra trazer isso a nossa comunidade. Produzir e tentar somar cada vez mais ao movimento. A gente taí há 3 anos e realizamos mais 100 encontros. No início o sarau tinha três pessoas recitando, porque a comunidade não tinha entendido bem o que é um sarau. Mas quando viu que é tudo realmente o que a gente já fazia; cantar representar, fazer poesia, usar a tradição oral. Baguio que já vem desde nossos ancestrais. Então, foi aí que, simplesmente só se olhou no espelho. A gente só se olhou no espelho e deu continuidade, né. Não tinha nada novo, embora em momento e circunstâncias diferentes.

P – Só faltava subir no palco...

Michel – Estava faltando só o espaço e estamos ocupando com grande afinco. O dono do bar que é o Santista também é um poeta e participante. Daí surgiram várias possibilidades. Os poetas que já escreviam e não tinham como transmitir sua poesia acharam seu lugar. Outros que passaram a se apropriar da escrita e começaram a produzir seus versos e a levar em outros lugares. O fato mais importante é a integração com outros movimentos. A gente tem um trabalho de trocar e fortalecer todos os saraus que estão na periferia. Desde o Binho, Cooperifa, Ademar, Brasa, que a gente identifica como irmãos. E toda vez que visitamos um outro sarau, a gente se alimenta disso e volta renovado.

Revela-se o encontro de imagens e palavras. Recordações são matéria-prima do poeta. Salamaleque, Elo da Corrente. Brindemos, Michel, o teu...

Apogeu

Meu último sonho bom
Durou quase cinco dias


Ditava minha harmonia
Afinava o meu tom


Cercado de gente bamba
Eu usava uma coro
a

Todo mundo numa boa
Me clamando: Oh, rei do samba!

As estrelas se aprumavam
E brilhavam pelos cantos

Revestiram o meu manto
E dos outros que passavam


Que celebração imensa
Cada um no passo certo

Sem essa do que é certo
A magia era intensa


Eu só me revigorava
Sendo nada, sendo tudo


Alegria era o escudo
Não importa onde eu estava

Foi assim na sexta-feira
Depois sábado e domingo

Conheci muitos amigos
Cantamos a noite inteira


Na segunda um estouro
Flutuei pela batida

No tum-tum da minha vida
Me banhei em chuva d'ouro


A cuíca e seu chorim
O sorriso do pandeiro


Invadiu-me por inteiro
Ritmando o tamborim


E também no dia seguinte
Me entorpeci de amor


Deleitanto uma flor
Musa de puro requinte

E aí fui elevado
Ao mais valoroso posto

Tinha vitória no gosto
Me senti lisonjeado


Acordei só meio-dia
Nessa quarta bem cinzenta
E a ressaca rabugenta
Destruiu minha fantasia.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Trajeto Luz


Seo Tobinha carrega patuá. Zeloso, poeira não adormece na obrigação. Estacionado no ponto, aguarda ansiosos passageiros. A flanela cor amarela vai e vem. Tudo verifica. Freio, câmbio, campainha. E o pensamento, de qual profundeza trouxe caso pra contar?

- Pra que um peixe desse tamanho, homem? Isso deve pesar mais de 3 quilos. Pacu grande tem mais gordura que carne. Oi lá! Escolhe um menor, mais magro...

- Esmeralda fica louca quando resolvo ir à feira. A primeira coisa que faço é checar a banca do peixe. Ontem, tinha até o pescado que mais gosto. Pacu de tudo que é tamanho. Ainda, pra gozar a Esmeralda, disse:

Olha só o pacuzinho subnutrido que você quer que eu compre? Mulher! Veja o jeitão desse aqui - pacuzão sarado - Isso tem uns nacos de carne, que só de pensar misturado na farofa, meu estomago ronca de fome.

Tem duas coisas que deixam Esmeralda arretada. Gastar dinheiro desnecessário e certas brincadeiras de palavras mais apimentadas. A bichinha fica toda vermelha de vergonha. Nem dentro de casa, ela suporta. Quanto mais na frente de pessoa estranha. Franzindo a testa foi logo falando:

- Se achou o que procura, paga! E vamos embora. Não é só peixe que viemos buscar. E não tenho tempo a perder em conversa de boi sonso.

- Pesa lá um quilo de camarão limpo pra misturar no recheio, falo pro moço.

- Vige! Hoje amanheceu pra inventar moda de me atazanar. Tá pensando o quê? Que santo faz dia neste dia, seu Tobinha? Gastar dinheiro à toa com essas tripinhas? Dê pra mim o dinheiro que eu sei muito bem o que devo comprar pra mó de fazer um almoço decente!

- Ela sabe o valor do dia anterior. Esmeralda é assim, a aparência rude não diz a brandura do coração. Quando chegamos em casa carregando as sacolas, os filhos estavam no aguardo.

O bolo e as flores enfeitando a mesa, surpresa da filha mais nova, a Juraci. As velinhas acesas pra gente assoprar os trinta e dois anos de casados. Olhando todos à nossa frente. Os seis filhos, noras, genros, e os 12 netos, pensei: trinta e dois anos se passaram na construção da nossa família.

Fiquei com os olhos marejados d’água. Esmeralda conteve as lágrimas. Era o acanhado sorriso no peito enorme que falava por conta dos abraços que ela distribuiu apertado em cada um. O pessoal fazendo coro “beija, beija, beija” fez sobrar pra mim a beijoca que estalou na face.

Esmeralda, do sertão do Ceará, mais eu, partimos no dia seguinte ao casamento. A última festa na roça de meus parentes, amigos que lá deixei. Não foi fácil. A lua não teve mel no sacolejado caminho de São Paulo.

Caramba! Hoje aqui no Jd São Judas, trinta e dois anos depois, vige! Foi o motivo pra tomar muita cerveja. A casa toda ficou cheia. Depois do futebol vieram os amigos do time: Feijoca, Bastião, Linguarudo, Café, Tomé, todos contentes com o nosso Palestra. Jogar no campo adversário e sair com empate é vitória!

Foi um domingo muito feliz, de boas lembranças. E eu só posso dizer: Meu pai Oxalá! Sou grato pela graça que me concede.

Desce as escadas. Ajeita o espelho retrovisor exterior e vai dar a última inspecionada.


Oxe! já vai dar 4h15 e a 125 não chegou? Será que a neném não melhorou da febre?


Esse ar da madrugada me deixa sonhador. Eu gosto de apreciar as estrelas, a lua, hoje, em quarto crescente. E essa rotina de rodear e ouvir o batimento de cada pneu, toda manhã - tum, tum, tum - se eu ganhasse cinqüenta centavos por pneu batido, um bom dinheiro teria juntado nesses 29 anos de trabalho.

Faltam seis anos pra eu me aposentar. Mas, quando penso no assunto, em vez de alegre fico preocupado. Ouvi dizer que os políticos querem aumentar o tempo pra se conseguir aposentadoria. Que vai precisar quarenta anos de contribuição pra previdência. Além de querer acabar com o 13º! É penitência demais.

A gente paga mensalmente pelo descanso que um dia, só Deus sabe, se podemos usufruir. São trinta e cinco anos de desconto na folha de pagamento e não basta? Tão querendo mais? Ah, isso é conta de político safado mal feito mal eleito que não reconhece o valor do trabalho dos outros!

Em meio às divagações chega Helena, a cobradora.

- Bom dia, 53!

- Bom dia, 125. Em casa tudo bem?

- A Vitórinha demorou a pegar no sono. Febre não teve, mas se queixou de dor. Tô achando que é ouvido. Ela leva a mãozinha e coça a orelha por dentro, tadinha!

- Toma um café?

- Hum! Garrafa térmica nova! Presente, de quem?

- Foi do Júlio. Ele passou nos testes! Logo vai ter uma linha.

- Legal! Tava torcendo por ele. Nossa! Levantei atrasada. Se não fosse uma carona, não teria chegado a tempo.

- Faltam cinco minutos pras 4h30. É hora de aquecer os motores. Olha o casal vinte dobrando a esquina.

- Estou achando que eles estão com problema. Ontem ela estava com cara de quem chorou.

O facho de luz vara a escuridão. O seo Sebastião apoiado na bengala e equilibrando o chapéu. Durinho, não se mexe. Parece que vai bater continência. Todo dia, na primeira partida, ao lado do mesmo poste, só observando, talvez sentindo alguma saudade. Apressados os passageiros vão chegando.

- O banco perto da cobradora é meu!

- A janela é minha.

- Bom dia, bom dia! São dez anos nessa linha. Já vi muita gente descer e subir esses degraus. Bom dia, bom dia... Tudo certo, 125? Podemos partir?

-
Trouxe uma sacola de livros pro Chico Papel e logo hoje ele está atrasado. Vamos embora, 53.

- Anda motorista, parece que não sei!!!

- Não conheço todos que aqui trafegam. Sonhos e atitudes chegam e se despedem a cada sinal de parada. O que fazem, o que querem, o que buscam? Ao real condutor, não importa.

Saibam, apenas, que a esperança tem lugar neste coletivo. Sentada ou em pé, espremida em meio ao transporte constante de emoções e conflitos.

Senhores passageiros, o trajeto luz carrega desafios e destinos. Invariavelmente, a hora se faz exata. Boa viagem!

Engata a marcha, o acelerador faz sua parte. O volante gira e seo Tobinha cantarola uma canção.

- Quando eu vim do Ceará, pensei
Aqui não vou ficar
Nesta terra não tem rio
Onde é que eu vou pescar

Passado algum tempo
Percebi que me enganei
Em meio ao mar de gente
O pescado fui eu

Por aqui fiquei, por aqui fiquei
Vivendo. Lições aprendendo
Neste mundo de ilusões
Em quatro rodas me montei

Quando eu vim do Ceará, pensei
Aqui não vou ficar
Nesta terra não tem rio
Onde é que eu pescar

O coletivo ganha velocidade na inclinada via do bairro.

- Moço! Você vai passar ou montar em cima de mim?

Marco Pezão