quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Dilema

- Ultrapassa, dona! Está com medo de quê? Dá pra passar uma jamanta! Vou entrar à esquerda! Vai, vai com Deus... Agora não, bichão! Agora é minha vez. Pode buzinar à vontade...

Essa entrada pra pegar o corredor de ônibus é sempre confusa:

- Puxa mais um pouco que vai dar. Beleza!

E vamos no retão, onde, ao menos, um pouco, o seu Tobinha pode descansar o pé no acelerador.

No retrovisor ele dá uma geral nos passageiros e a lotação está quase completa. Reconhecendo semblantes, percebe os que viajam hoje no percurso.

Quantas histórias permeiam sentimentos confusos abrigados no íntimo? Um contêiner em movimento carregando sonhos e dramas.

O principal desafio no amor é conviver com as limitações de cada um, não é não casal vinte? Sentados à esquerda, ambos mantêm os olhos voltados pra janela, pintando nova paisagem além dela.

Em ser resultado de circunstâncias. Circunstâncias que operam, imperam e, cedo ou tarde, pedem respostas.

Desta luta não há como correr. Os rounds são aflitos. O eu deve sair vencedor ou o corpo tomba vencido.

Alexsandro Papel, com a cabeça recostada, tem os olhos fechados. Não dorme. Trilha o fio da amargura, hesita o passo, mas sabe que é preciso prosseguir pra resolver de vez o estranho dilema.

- Que ventre me pariu? Que ventre me pariu? Que ventre me pariu? Não tenho resposta. Quem me pariu? Só uma coisa é certa. Foi uma boceta que me pariu. Cagado é que não fui. Impossível localizá-la? Mãe! Quem, diabos, é minha mãe?

Aproveito o farol vermelho pra dizer que a pergunta sem a devida resposta é o martírio vivido por Alexsandro. Menino bom, bem criado, apesar da ocorrência inédita em seu desenvolvimento, desde a inseminação e gestação.

- Bebê de proveta! Bebê de proveta! Bebê de proveta! Inseminado! Eu não fui trepado. Eu vinguei punhetado! Egoístas. Egoístas é o que eles são. Nunca mais quero vê-los. Não me dão o direito de conhecer meu verdadeiro pai, quanto mais a pobre moça, minha mãe, transformada em barriga de aluguel.

- Dona, a senhora desce essa rua e vira à direita. Nesta mesma calçada. É logo ali. Por nada, até logo!

Seo Tobinha, gentil como sempre, facilitou pra passageira. Mas, quanto ao Alexsandro, deu pra sentir o drama?

Os pais só revelaram a verdade para Alexsandro sobre sua origem quando o jovem ingressou na faculdade.

Não esperavam uma reação tão intempestiva. Em poucos meses, o estresse falou mais alto e Alexsandro largou tudo.

Estudo, roupas, sapatos, livros. Saiu com a vestimenta do corpo e algum dinheiro usado pra alugar o cômodo e cozinha pra morar.

Mesmo distante do sofrível motivo que o transtornara, a mudança de ares nada adiantou. O problema está na cabeça dele.

- Tiveram a pachorra de se masturbarem. Depois, pegaram as porras e colocaram em dois tubos de ensaio. Misturaram os tubos para análise e processo seletivo. Qual espermatozóide ganhou a condição de ir fecundar o óvulo da minha mãe desconhecida? Quem é meu pai?!

O meu próprio nome é o produto de dois pais. Alex e Sandro. Do nome deles nasceu o meu nome: Alexsandro Carvalho Amorim. Carvalho de um. Amorim do outro.

Pedi que fizessem o exame DNA. Eu quero saber ao menos, em definitivo, quem é meu pai? Já que não posso conhecer minha mãe! E qual foi a resposta?

Disseram: você é privilegiado, têm dois pais que são duas mães só pra te paparicar... Tudo, com eles, é brincadeira:

– Olha, Alex, os olhos do Sandrinho. O jeito de olhar é seu.

- Ah, Sandro! Todo mundo diz que a testa dele é sua. Sem tirar nem pôr.

- Ô 125, faz passar esse povo na catraca. Vamos liberar a passagem, gente!

É complexo o caso do amigo. Os pais, homossexuais, decidiram ter, criar e amar um filho, só deles. Conceituados em suas carreiras, um é médico e o outro advogado, utilizaram meios modernos e legais para realizá-lo.

- Se ao menos tivessem guardado o endereço da moça minha mãe. Não importa ser tecnologicamente projetado. Permitissem visitá-la!

Pude sentir o bico do seio dela amamentando minha boca, durante quanto tempo?

Três meses, e então secou o leite? Não posso acreditar que depois, secado o leite, seco estava o amor de minha mãe?

Nunca mais, em nenhum momento, houve por bem pensar em mim? Não creio que exista mãe assim.

Eles, sim, são culpados. O dinheiro tudo compra. O suborno tange o silêncio. Alugaram a barriga dela como se compra um guarda roupas?

Minha doce mãezinha! Pudera te conhecer.

- Ô motorista! Não cabe mais gente aqui não. Vai parar em todo ponto?

- Falta de consideração...

- No fundo do ônibus tem lugar vazio! Tá todo mundo na catraca. Ô 125, parece que você tem mel?

- Tem um homem encalacrado aqui no meio! Dá um jeito de desobstruir a passagem, meu senhor!

Acho que não vai dar, 53! O homem é muito gordo. Não passa na catraca. Vai ter que voltar e descer pela porta dianteira.

- Meu Deus do céu, agora enfezou. Nem pro baixo e nem pra riba.

Se der atenção à conversa de passageiro, chora e ri. Dou meu ouvido, mas entra de um lado e sai do outro.

Nem sempre, é certo. Têm histórias comoventes, doentes, excitantes, que me fazem pensar!

No caso de Alexsandro, a ferida existencial está exposta.

- O dinheiro me proporcionou as melhores roupas. Colégios particulares. Casa na praia. Carros. Conforto. E não posso deixar de reconhecer o carinho e cuidados com meu bem estar.

Sim. Eu gostava daquela mutação diária. O Sandro tornava-se Sandra. O Alex, travestido em ternura aduladora. Confesso, em soberbo amor me deleitei. Os via como duas mães, só minhas. Ora eram dois pais, somente meus.

Sentia-me pleno, seguro sob as asas daquela estranha paixão. Amavam-se sinceramente, abertamente, e não temiam observações maldosas sobre o amor que praticavam.

A casa, costumeiramente, recebia tantos amigos. Amigas zelosas, que, entre prosas e risos, me excitaram a descoberta do sexo.

Havia no quintal muitas plantas, os cachorros, e a paz teceu clima durante minha infância e adolescência.

Mas não posso deixar de observar, e isso magoa. Não passo de uma experiência. O desenvolvimento de um bebê de proveta. Articulado, premeditado friamente.

Um clone satisfazendo desejos, deles. Banais! A revolta fez liga em meu sangue, creio, oriunda do gen materno.

Avancei adiante e olhando pra trás vi a redoma. Compreendi a falsa felicidade na qual estive mergulhado, quanto tempo?

Senti-me marionete, um marionete, marionete, e entendi ser preciso cortar os fios atados àquelas mãos hábeis, manipuladoras, capazes de persuadir as regras de Deus.

Não! Eu serei o que quero ser! Se uma folha em branco significa ser alguma coisa, então sou. Do contrário, eu escrevo minha vida, nela.

Eu! Tomaram ciência? Eu! Enfim, o bebê saiu da proveta! Sofram! Eu sofro também. Se ao menos pudesse saber quem é minha mãe? Qual ventre me pariu?

O trânsito hoje está infernal. Essa orquestra de buzinas não resolve, irrita, e o melhor a fazer é não esquentar a cabeça.

Alexsandro continua preso em sua concha; repassa e examina anseios contraditórios. Chegará ao ponto final ou desce em meio ao fluxo e faz da multidão o habitual esconderijo?

- Quer chegar pra frente, por favor. Tem espaço ali e o senhor não sai detrás de mim?

- Não tenho culpa, moça. Está apertado. Abre caminho que eu passo!

- Isca. Pega!

- Que cheiro esquisito é esse?

- Quem foi o cara de pau que soltou o pum?

- Muuugi boi. Muuugi boi. Muuuugi....

Marco Pezão

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