quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Será que pode?

- Que diabo é esse batendo na lataria, 125?

- Encosta, 53! É o Papel correndo atrás do ônibus.

- Não para não, motorista! Tá fora do ponto. Vamos embora!

- Logo cedo estressado, tricolor?

- E não é pra tá? Outra vez, em frente ao portão de casa, tinha bosta redonda feito uma torta.

- Muuugi, boi...

- E, na calçada, uns cocozinhos parecendo caroço de azeitona.

- Mééééééé...

- Ufa! Valeu, seo Tobinha. Bom dia!

- Bom dia, Papel! Por pouco ficava, se faço a curva, só amanhã.

- A solução de todos os mistérios, aparentemente intransponíveis, está na firmeza do pensamento. Graças, a ele, viajo a bordo do sucesso.

- Sem você, a viagem não ia ser a mesma...

- Reciclei um livro de auto-ajuda e resolvi pôr em prática os ensinamentos. Não sou mais um peão perdido no tabuleiro de xadrez. Sou torre medindo adversidades, minha postura agora é de xeque mate.

- O que seria do rei, se não fossem os cavalos?

- Deus me dá força pra empurrar a carroça, e o resto eu faço. A concorrência aumentou muito, porém, o sol brilha para todos em maior ou menor escala; isso depende da eficiência do trabalho, do acontecimento imaginado por mãos fecundas. E, com sua licença, seo Tobinha, vou atuar em grande estilo.

- O palco é seu.

- Senhores e senhoras, Alexsandro Papel, reciclagem de papelão e artigos de papelaria, feliz em compartilhar suas companhias, deseja a todos um ótimo dia. Acompanha essas palavras matinais, um pedido de desculpas.

A primeira viagem traz saudades da cama e, de repente, um chato, se fazendo ouvir, falando feito despertador. Sinto muito, mas é meu serviço e humildemente peço colaboração.

Vou estar distribuindo uma sacolinha. Leiam, por favor, a mensagem estampada. A Fundação Sol Nascente - que eu represento – não deseja dinheiro e , sim, que o espírito de solidariedade se manifeste em cada um dos passageiros.

A grandeza de um homem, mulher ou criança, se mede pelo tamanho de suas ações, socialmente praticadas. Por favor, senhor, segure uma sacolinha. A senhora, por gentileza. Você, jovem... De que maneira ser solidário em posse de uma sacolinha?

É simples. Tudo que é papel, papelzinho, papelzão, papelão, não jogue fora. Guarde na sacolinha. A sacolinha é um símbolo de consciência.

Usem sacolas descartáveis, sacos de lixo. Façam mutirões. Juntem cadernos velhos, calendários, agendas, notas fiscais, tique de caixa registradora, jornais, revistas, livros escolares...

O trajeto luz leva sua carga. Pessoas quietas, olhares a frente em breves balanços. Alguns ouvem, outros bocejam indiferentes, mas, dona Dirce e a dona Angelina, conversam animadamente...

- Estava com vontade de fazer nhoc com massa de batata. Angelina, preparei uma receita que aprendi com a minha sogra, que Deus a tenha, é qualquer coisa de fenomenal.

Ei, Alexsandro! Tenho em casa alguns livros de receitas que já não me fazem uso. São receitas ótimas e simples de fazer. Como faço para entregar?

- Grato, dona Dirce! Note que dentro da sacolinha tem um bloquinho de papel reciclado e uma caneta muito bonita. E essa escreve! Por favor, anote seu endereço, telefone, que eu providencio a retirada.

E a colega ao lado tendo algum artigo de papelaria disponível, contribua; seja também uma primorosa doadora em nossa causa. Reciclar e solidarizar o conhecimento são atitudes nobres.

Livros novos custam caro. E a maioria da população não tem acesso a eles. Como desenvolver o hábito de ler, se os livros não circulam em liberdade?

Livro parado é livro amputado. Eles contêm histórias, conhecimentos. São pernas de escritores querendo chegar aos olhos dos leitores. E os deixamos acumulados numa caixa qualquer ou tomando pó na estante, no armário, na mala esquecida.

São atos e informações que repousam sem conquistarem suas metas. E nós, ao invés de sermos guardiões desnecessários desses tesouros, podemos colocá-los em circulação, devolvendo- lhes a utilidade devida.

Não tomarei mais o tempo precioso de vocês. Estejam alerta. A Fundação Sol Nascente, através da reciclagem, contribui para a preservação de milhares de árvores.

Árvores que purificam o ar, vital a nossa saúde, e que devem servir ao fabrico do papel.

E, como vocês já devem ter notado, dentro da sacolinha, a caneta e o bloquinho de papel reciclado fazem parte da campanha que a Fundação Sol Nascente vem promovendo no auxílio de jovens prisioneiros do mundo das drogas e do alcoolismo.

A ajuda que pedimos é de apenas um real. Um real somente e o abrigo continuará a oferecer tratamento médico e psíquico a todos os desamparados.

Infelizmente, aqueles que não dispõem o dinheiro no momento, por favor, me devolvam a caneta. Mas a sacolinha e o bloquinho de papel reciclado seguem na missão!

Em nomes dos perseverantes, a Fundação Sol Nascente aguarda seu contato ou visita para tornar-se um respeitável doador oficial...

Assim começou o dia igualmente a tantos outros dias que passam sem conta. Enquanto o ônibus percorre sua rota, Alexsandro Papel recolhe as canetas e prossegue da maneira habitual.

- Senhoras e senhores passageiros, eu me despeço com votos de reais felicidades. Alexandre Papel, reciclagem de papelão e artigos de papelaria...

Nisso foi interrompido por uma moça trajando preto, de penteado curto e azulado, com grandes brincos nas orelhas, piercings sobre a sobrancelha e nariz. Exibindo sua sacolinha falou em tom sério, mas exalando intimidade e zombaria:

- Alexsandro, querido! Papel higiênico usado, pode?

- Muuugi boi...

- Mééééé...

Marco Pezão

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