terça-feira, 24 de agosto de 2010

Ó ó ó ó freguesia! Aqui é Poesia! Na Brasa, mano!

Bar do Carlita, na Vila Brasilândia, onde acontece, aos sábados, às 21h, o Sarau Poesia na Brasa...

Quente como veneno. É só se deixar invadir. Mantenha a mente aberta dando vazão à emoção. O coração tá nessa. Na ponta da caneta ou na voz desse povo da poesia. Vai sentir-se bem, mano.

Eita povo, mora! Não os conhecia. Aliás, os conhecia de nome. Sarau Poesia na Brasa. Um dia cheguei, mano.

Sabadão, meio da tarde, debandei do Campo Limpo num bus pra Paulista. Embalado e chapado da continuidade do ontem dormi e acordei só no Paraíso. A cabeça é que tava o inferno. Zoada, mano!

Refresco um sorvete e aos poucos a fumaça foi se dissipando. Embarcado estava no bus Vila Brasilândia seguindo o roteiro. Maior viagem, mano.

Mudando a paisagem, toda quebrada se parece. São Paulo tamanho medonho. Consumindo esquinas lembrei acadêmica colega de trabalho falando. A tradição negra lá é muito forte! Fiz a leitura. Branco na miúda. Nada disso, maior respeito, mano.

Me enturmando com a turma da zona norte no bar do Carlita. Oxalá me quer bem. Sempre tem algum poeta conhecido. Estamos com a máquina fotográfica em punga e uma bramosa pra assentar o espírito, mano.

E o tambor e o atabaque começam a fluir trazendo saudação:“Tambor, tambor vai buscar quem mora longe ‘...’ Ô meu tambor que é feito de couro e pau vai buscar todos poetas pra falar no meu sarau...”

Ao fim do recital, braços sobre ombros se alongam em redor. “Tambor, tambor vai levar quem mora longe ‘...’ Vai levar todos poetas que falaram no sarau...” É isso aí, mano. Pá de gente nova e magia de candomblé. O baguio pega e os versos exalam flor da pele.

Impressionado também fiquei quando retornei em julho pro aniversário de dois anos quando aconteceu o lançamento do segundo volume da antologia Poesia na Brasa. Fecharam a rua com o palanque. Até a velha guarda da Rosas de Ouro colou, mano.

Tudo feito no maior suor. Palco tem que buscar, montar, devolver, depois de vencer a canseira burocrática, você tá ligado. É correria de quem tem algo a dizer e corre pra tornar verdadeiro, mano.

E o relacionamento criado, embora novo, nos permitiu ocasionar a participação do coletivo na abertura da 21ª Bienal do Livro, no Anhembi.

Foi na van do motorista Tomoto, em 12 de agosto, quinta-feira, que da Vila Brasilândia acompanhamos parte da costumeira e semanal presença. Quatorze poetas ao todo. O bastante pra fazer maior eco, mano.

Elo de corrente a roda formada. A cantoria e o batuque soaram toda apresentação. Cada qual se lançando ao praticável armado de sua função. Não emudecer, jamais. Vozes aladas.

Alta pegada dos caras e das minas lá da Brasilândia, mano. Oxalá! Bendita seja a convivência!

II

Eu agora neste ensolarado domingão. Sem poder brejar. Sorvendo remédios por conta dumas berebas, na perna, explodida. É no que deu os vários graus, ao tempo, devidamente consumidos. E, antes que a pressão me imploda, temo. Dei um breque, mano.

Mas, machucado, sim, por outro motivo. Hoje, último dia da Bienal, decorridos onze saraus, fim da nossa incumbência. Não vou. Não vou arredar pé de casa. Tô p..., mora. Não tá no mapa da poesia o que me aconteceu. Te conto, mano.

Pô, quase quinze anos de andança na várzea; fotografando e escrevendo o futebol varzeano sudoeste. Fazendo matérias de saraus nos bares da quebrada. Percorrendo favelas, as bocadas da periferia, e nunca me sumiu uma pilha, mano.

Ontem, sábado, cheguei no estande da Fundação Volkswagem, local de nossa obrigação, cheio de entusiasmo em rever amigos e as poetas da Ademar. Camilas e decotes. Deslumbrei fotos maravilhosas, mano.

Depois de minha identificação pra adentrar o recinto. Vê; eu que ia trabalhar e estava usando crachá! Cumprimentei a todos. Instalavam-se os microfones, aquela passada no som. Louca cena que ainda procuro imaginar.

As pessoas foram andar ficando somente a produção, o segurança, a mina do lap top que dá um trampo comigo, sentada à entrada. Uma colega que estando só na platéia ouviu de mim, mano.

Olhe por minha mala, por favor; justificando minha ida ao banheiro.Gente a dar pro pau, andando. Aproveitei pra fumar um cigarro. Não deu dez minutos e voltei, mano.

Entrei e troquei a boa expectativa que me cercava por sentimento de desprezo de mim comigo, ao ver que a minha mala colocada atrás da poltrona juntamente com outras tantas, ela coberta com meu agasalho, havia sumido, mano.

O agasalho foi deixado no chão. Perguntas em vão. Ninguém viu, ninguém sabe. Busquei afora e dentro entre as histórias circulantes e livros estarrecidos com tudo o que se há de contar. Fiquei com a maior cara de mané, mano!

Eu, nego véio, de mil e uma paragens sub urbanas. Que nunca sentiu o desvio de uma pilha, agora ser lesionado em casa de bacana, mano.

Acusar não dá, antes, me acuso. Mas a negligência da produção é imperativa. Maior miguelagem, mano. Minha máquina fotográfica. As lentes, meu gravador. Equipamento de trabalho...

A coletânea completa das poesias de Mario de Andrade, que não era minha e vou ter de pagar outra. Meus poemas em soltas folhas impressas. O óculos escuro. Aí meu prejú material, mano.

Furtaram-me, mesmo que momentaneamente, o prazer de produzir imagens. Mas, Oxalá é mais! Não podem me roubar as palavras, a quem todos temos direito. E, desse assunto sofrido, a boca emudece, mano.

III

Já é segunda-feira e percorro lembranças pra terminar meu objetivo. Folheio o livro Poesia na Brasa onde procuro incendiar o entusiasmo aplacado. Escuta o que diz o coletivo, mano:

“Quem vê o nosso trabalho, imagina que chegar até aqui foi tarefa fácil, mas muitos desconhecem nossa caminhada, que ao longo do percurso teve várias conquistas, porém teve também vários trabalhos frustrados. Nestes dois anos foram muito mais pedras do que flores, porém aprendemos a pegar essas pedras e construir caminhos diferentes para nossas periferias, com o cheiro bom das poucas flores que recebemos...”

O eu em nóis é a chave da cadeia, mano. Essa é a real. Como é que pode uma Bienal do Livro não ter um estande dedicado aos poetas e escritores da periferia, cujos livros bancam?

Que as secretarias de culturas teimam em não reconhecer a literatura periférica como fato, hoje, transformante? Quando muito, esmolas em conta gotas. O poder é blague, mano.

Nos onze saraus apresentados na Fundação Volkswagen mais de uma centena de poetas declamadores, além de atores, músicos, marcaram ali presença. É pouco? Querem mais? É só abrir as trancas. É só abrir as trancas, mano. Ouça o que fala a Ana Carolina Teixeira Maria:

“E se a novela, a música, a dança – entre outros – mostram uma visão tão superficial e preconceituosa de questões como a etnia, de gênero, de opção sexual e de classe, resta aos espaços alternativos suscitar uma discussão que vá além das teorias acadêmicas, partindo das experiências de quem vive a realidade concreta. ‘...’ O propósito do Sarau não é a arte simplesmente pela arte, mas sim a arte que tem o objetivo de estimular um processo socioeducativo que alimente a luta e a resistência de um povo que não se segrega pautado nas diferenças de etnias, sexo, idade ou origem; mas que se reconhece enquanto classe!”

Recordações, aprendizagem. Ó ó ó freguesia! Aqui é poesia. Na brasa! Baguio louco, mano. Atente ao chamado:

“Tambor, tambor vai buscar quem mora longe
Tambor, tambor vai buscar quem mora longe
Ô meu tambor, que é feito de couro e pau
Vai buscar todos poetas pra falar no meu sarau
Vai buscar todos poetas pra falar no meu sarau...”


Michell da Silva, mais conhecido por Chellmí, é da Vila Brasilândia e faz parte do Coletivo Cultural Poesia na Brasa. Ao pé das imagens brota o seu poema...

A Verdadeira Roseira

Explosão na quadra, o grito de campeão ecoa

Euforia de rosas,

na cidade da tempestade e não mais da garoa

Não importava quem estivesse

com os dentes brilhando ou com sorriso banguelo

Naquele dia ninguém julgou

se você estava de tênis ou chinelo

A Brasilândia desceu o morro e tomou conta de novo

Mostrando que a melhor festa é feita pelo povo

Dezesseis anos na espera e o dia chegou

Apaixonados de uma só voz gritando que a campeã voltou

É a roseira embalada ao sabor do chocolate

Veio o bom samba tecido pelas mãos do mais belo alfaiate

A comunidade que sofre teve seu momento de felicidade

A quadra foi invadida pelo desabafo da humildade

Pra quem faz da sua camisa um manto e nunca sua farda

Um salve de coração à sublime velha guarda

Um furacão, ou melhor,

um tornado que comandou aquela bateria

Nota 50 que quem a acompanhou jamais a deixaria


Desfile digno de uma escola tradicional

Na última nota da apuração, emoção não tem igual

Depois de muito tempo foi redescoberto o tesouro

Hoje bato no peito e tenho orgulho de ser Rosas de Ouro.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Sarau Elo da Corrente na abertura da Bienal do Livro

A plateia no Estande da Fundação Volkswagen...

O Mapa da Poesia recebeu a missão da SPEL, São Paulo Estado de Leitores, para organizar 10 saraus no estande da Fundação Volkswagen, nesta 21º Bienal Internacional do Livro, pavilhão do Anhembi, no horário das 19h30 às 21h30.

No prazo entre os dias 12/8 e 22/8 tínhamos a chance de ocupar um espaço "sagrado" com a poética atual, urbana, revestida em sangue novo. Convidamos diversos coletivos literários que hoje recheiam o centro, sua periferia, e Grande São Paulo.

Arlequinal!

Em questão de um dia - graças a seriedade dos saraus existentes - preenchemos a grade pedida e ainda ocupamos o horário das 18 horas, em 12/08, para apresentação do Elo da Corrente, de Pirituba, que esteve complementada em seu entusiasmo com a chegada da co-irmã Poesia na Brasa, da Brasilândia.

O roteiro assim foi montado: Elo da Corrente, Poesia na Brasa, Escambo, Politeama, Poetas da Casa das Rosas, Récita Maloqueirista, Pavio da Cultura, Camarilha, Círculo Palmarino, Sarau da Ademar e Encontro de Utopias.

Chegado o dia da abertura e a bordo da Van seguiu a Lids, produtora cultural, para Pirituba. Tornou-se elo da estreia, de uma corrente que nos aprisiona e nos liberta a voz. A festa dos versos!

Ao final de prazerosa noite, onde até índios guaranis declamaram, conversei com poeta Michel, também protagonista dos encontros semanais do Elo da Corrente, às quintas-feiras, às 21h, no bar do Santista. O desenrole foi esse:

O poeta Michel durante apresentação no Sarau Poesia na Brasa, na Brasilândia...

P – Michel, como você vê o movimento poético na nossa periferia?

Michel – Salve Pé! Vejo que o movimento tem trazido uma força muito grande pras comunidades. Todas que hoje estão trabalhando a literatura, numa herança do rap, do samba, de outros movimentos que já existiram. A gente está buscando uma seqüência de grande auto-estima. De mostrar nossa capacidade artística e cultural. De se apropriar dos meios públicos e das produções também, criando editoras. Criando esses espaços que são os bares que até então eram vistos com olhos de preconceito, de doenças como o alcoolismo. A gente está transformando num lugar onde a comunidade pode se encontrar e comungar e celebrar a cultura. Isso a poesia tem possibilitado! Desde a semente que a Cooperifa plantou, com você, inclusive. É uma coisa que floresce em cada bar, hoje, em vários lugares. E pra gente tem sido a maior satisfação participar e somar nesse grande movimento.

P – Como surgiu o sarau Elo da Corrente, em que ano?

Michel – O Elo da Corrente surgiu em 2007. Em junho de 2007 a gente fez o primeiro sarau. As pessoas que organizam o Elo da Corrente participavam da rádio comunitária, da região de Pirituba, a Urbanos FM, que chegou a transmitir alguns saraus. Como a gente já tinha um conhecimento do movimento literário que tava acontecendo na periferia, que não é de hoje, tivemos contato com o trabalho da Cooperifa e criou-se então uma referência muito forte pra trazer isso a nossa comunidade. Produzir e tentar somar cada vez mais ao movimento. A gente taí há 3 anos e realizamos mais 100 encontros. No início o sarau tinha três pessoas recitando, porque a comunidade não tinha entendido bem o que é um sarau. Mas quando viu que é tudo realmente o que a gente já fazia; cantar representar, fazer poesia, usar a tradição oral. Baguio que já vem desde nossos ancestrais. Então, foi aí que, simplesmente só se olhou no espelho. A gente só se olhou no espelho e deu continuidade, né. Não tinha nada novo, embora em momento e circunstâncias diferentes.

P – Só faltava subir no palco...

Michel – Estava faltando só o espaço e estamos ocupando com grande afinco. O dono do bar que é o Santista também é um poeta e participante. Daí surgiram várias possibilidades. Os poetas que já escreviam e não tinham como transmitir sua poesia acharam seu lugar. Outros que passaram a se apropriar da escrita e começaram a produzir seus versos e a levar em outros lugares. O fato mais importante é a integração com outros movimentos. A gente tem um trabalho de trocar e fortalecer todos os saraus que estão na periferia. Desde o Binho, Cooperifa, Ademar, Brasa, que a gente identifica como irmãos. E toda vez que visitamos um outro sarau, a gente se alimenta disso e volta renovado.

Revela-se o encontro de imagens e palavras. Recordações são matéria-prima do poeta. Salamaleque, Elo da Corrente. Brindemos, Michel, o teu...

Apogeu

Meu último sonho bom
Durou quase cinco dias


Ditava minha harmonia
Afinava o meu tom


Cercado de gente bamba
Eu usava uma coro
a

Todo mundo numa boa
Me clamando: Oh, rei do samba!

As estrelas se aprumavam
E brilhavam pelos cantos

Revestiram o meu manto
E dos outros que passavam


Que celebração imensa
Cada um no passo certo

Sem essa do que é certo
A magia era intensa


Eu só me revigorava
Sendo nada, sendo tudo


Alegria era o escudo
Não importa onde eu estava

Foi assim na sexta-feira
Depois sábado e domingo

Conheci muitos amigos
Cantamos a noite inteira


Na segunda um estouro
Flutuei pela batida

No tum-tum da minha vida
Me banhei em chuva d'ouro


A cuíca e seu chorim
O sorriso do pandeiro


Invadiu-me por inteiro
Ritmando o tamborim


E também no dia seguinte
Me entorpeci de amor


Deleitanto uma flor
Musa de puro requinte

E aí fui elevado
Ao mais valoroso posto

Tinha vitória no gosto
Me senti lisonjeado


Acordei só meio-dia
Nessa quarta bem cinzenta
E a ressaca rabugenta
Destruiu minha fantasia.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Trajeto Luz


Seo Tobinha carrega patuá. Zeloso, poeira não adormece na obrigação. Estacionado no ponto, aguarda ansiosos passageiros. A flanela cor amarela vai e vem. Tudo verifica. Freio, câmbio, campainha. E o pensamento, de qual profundeza trouxe caso pra contar?

- Pra que um peixe desse tamanho, homem? Isso deve pesar mais de 3 quilos. Pacu grande tem mais gordura que carne. Oi lá! Escolhe um menor, mais magro...

- Esmeralda fica louca quando resolvo ir à feira. A primeira coisa que faço é checar a banca do peixe. Ontem, tinha até o pescado que mais gosto. Pacu de tudo que é tamanho. Ainda, pra gozar a Esmeralda, disse:

Olha só o pacuzinho subnutrido que você quer que eu compre? Mulher! Veja o jeitão desse aqui - pacuzão sarado - Isso tem uns nacos de carne, que só de pensar misturado na farofa, meu estomago ronca de fome.

Tem duas coisas que deixam Esmeralda arretada. Gastar dinheiro desnecessário e certas brincadeiras de palavras mais apimentadas. A bichinha fica toda vermelha de vergonha. Nem dentro de casa, ela suporta. Quanto mais na frente de pessoa estranha. Franzindo a testa foi logo falando:

- Se achou o que procura, paga! E vamos embora. Não é só peixe que viemos buscar. E não tenho tempo a perder em conversa de boi sonso.

- Pesa lá um quilo de camarão limpo pra misturar no recheio, falo pro moço.

- Vige! Hoje amanheceu pra inventar moda de me atazanar. Tá pensando o quê? Que santo faz dia neste dia, seu Tobinha? Gastar dinheiro à toa com essas tripinhas? Dê pra mim o dinheiro que eu sei muito bem o que devo comprar pra mó de fazer um almoço decente!

- Ela sabe o valor do dia anterior. Esmeralda é assim, a aparência rude não diz a brandura do coração. Quando chegamos em casa carregando as sacolas, os filhos estavam no aguardo.

O bolo e as flores enfeitando a mesa, surpresa da filha mais nova, a Juraci. As velinhas acesas pra gente assoprar os trinta e dois anos de casados. Olhando todos à nossa frente. Os seis filhos, noras, genros, e os 12 netos, pensei: trinta e dois anos se passaram na construção da nossa família.

Fiquei com os olhos marejados d’água. Esmeralda conteve as lágrimas. Era o acanhado sorriso no peito enorme que falava por conta dos abraços que ela distribuiu apertado em cada um. O pessoal fazendo coro “beija, beija, beija” fez sobrar pra mim a beijoca que estalou na face.

Esmeralda, do sertão do Ceará, mais eu, partimos no dia seguinte ao casamento. A última festa na roça de meus parentes, amigos que lá deixei. Não foi fácil. A lua não teve mel no sacolejado caminho de São Paulo.

Caramba! Hoje aqui no Jd São Judas, trinta e dois anos depois, vige! Foi o motivo pra tomar muita cerveja. A casa toda ficou cheia. Depois do futebol vieram os amigos do time: Feijoca, Bastião, Linguarudo, Café, Tomé, todos contentes com o nosso Palestra. Jogar no campo adversário e sair com empate é vitória!

Foi um domingo muito feliz, de boas lembranças. E eu só posso dizer: Meu pai Oxalá! Sou grato pela graça que me concede.

Desce as escadas. Ajeita o espelho retrovisor exterior e vai dar a última inspecionada.


Oxe! já vai dar 4h15 e a 125 não chegou? Será que a neném não melhorou da febre?


Esse ar da madrugada me deixa sonhador. Eu gosto de apreciar as estrelas, a lua, hoje, em quarto crescente. E essa rotina de rodear e ouvir o batimento de cada pneu, toda manhã - tum, tum, tum - se eu ganhasse cinqüenta centavos por pneu batido, um bom dinheiro teria juntado nesses 29 anos de trabalho.

Faltam seis anos pra eu me aposentar. Mas, quando penso no assunto, em vez de alegre fico preocupado. Ouvi dizer que os políticos querem aumentar o tempo pra se conseguir aposentadoria. Que vai precisar quarenta anos de contribuição pra previdência. Além de querer acabar com o 13º! É penitência demais.

A gente paga mensalmente pelo descanso que um dia, só Deus sabe, se podemos usufruir. São trinta e cinco anos de desconto na folha de pagamento e não basta? Tão querendo mais? Ah, isso é conta de político safado mal feito mal eleito que não reconhece o valor do trabalho dos outros!

Em meio às divagações chega Helena, a cobradora.

- Bom dia, 53!

- Bom dia, 125. Em casa tudo bem?

- A Vitórinha demorou a pegar no sono. Febre não teve, mas se queixou de dor. Tô achando que é ouvido. Ela leva a mãozinha e coça a orelha por dentro, tadinha!

- Toma um café?

- Hum! Garrafa térmica nova! Presente, de quem?

- Foi do Júlio. Ele passou nos testes! Logo vai ter uma linha.

- Legal! Tava torcendo por ele. Nossa! Levantei atrasada. Se não fosse uma carona, não teria chegado a tempo.

- Faltam cinco minutos pras 4h30. É hora de aquecer os motores. Olha o casal vinte dobrando a esquina.

- Estou achando que eles estão com problema. Ontem ela estava com cara de quem chorou.

O facho de luz vara a escuridão. O seo Sebastião apoiado na bengala e equilibrando o chapéu. Durinho, não se mexe. Parece que vai bater continência. Todo dia, na primeira partida, ao lado do mesmo poste, só observando, talvez sentindo alguma saudade. Apressados os passageiros vão chegando.

- O banco perto da cobradora é meu!

- A janela é minha.

- Bom dia, bom dia! São dez anos nessa linha. Já vi muita gente descer e subir esses degraus. Bom dia, bom dia... Tudo certo, 125? Podemos partir?

-
Trouxe uma sacola de livros pro Chico Papel e logo hoje ele está atrasado. Vamos embora, 53.

- Anda motorista, parece que não sei!!!

- Não conheço todos que aqui trafegam. Sonhos e atitudes chegam e se despedem a cada sinal de parada. O que fazem, o que querem, o que buscam? Ao real condutor, não importa.

Saibam, apenas, que a esperança tem lugar neste coletivo. Sentada ou em pé, espremida em meio ao transporte constante de emoções e conflitos.

Senhores passageiros, o trajeto luz carrega desafios e destinos. Invariavelmente, a hora se faz exata. Boa viagem!

Engata a marcha, o acelerador faz sua parte. O volante gira e seo Tobinha cantarola uma canção.

- Quando eu vim do Ceará, pensei
Aqui não vou ficar
Nesta terra não tem rio
Onde é que eu vou pescar

Passado algum tempo
Percebi que me enganei
Em meio ao mar de gente
O pescado fui eu

Por aqui fiquei, por aqui fiquei
Vivendo. Lições aprendendo
Neste mundo de ilusões
Em quatro rodas me montei

Quando eu vim do Ceará, pensei
Aqui não vou ficar
Nesta terra não tem rio
Onde é que eu pescar

O coletivo ganha velocidade na inclinada via do bairro.

- Moço! Você vai passar ou montar em cima de mim?

Marco Pezão

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Sarau Arlequinal!

A poeta Regina Tieko marcando presença no Sarau na Casa Mário de Andrade

Clima de Copa do Mundo. Quente gélida África do Sul. Tombaram os elefantes. A Costa do Marfim sentiu o poderio. Ferve Brasil!

Anhangabaú, diante do telão, o vale abriga cinquenta mil pessoas. Amarga’mente doce domingo. Noventa minutos à espera de explosão.

- Expulsou o Kaká! Expulsou o Kaká!

- Vitória! Vitória!

- Paciência, Boi!

- É muito bicho blau! Cafungando blau-blau no seu redor!

Sexta-feira madorrenta vomita azedos em tua Aurora. Triunfo, a rua, e arredores, cachimbos sanguesugueiam espectros à deriva, na Luz, a estação.

Outros tempos. Próximo ao teu sobrado da Lopes Chaves serpenteia o elevado Minhocão. Barra! Funda!

Passadista futurista como é, sabe! Somos tatuzão furando chão. Petroleando metro a metro lentos trilhos. Rápido transporte. Metrô!

Pena! Ainda bem longe do meu pedaço.

A periferia se estende longe. É tanto aço espalhado. Empalhado se mantém aquele fulgor de outrora, paulistanamente falando.

Ouço: “Luzes do Cambuci pelas noites de crime... Calor!... E as nuvens baixas muito grossas, feitas de corpos de mariposas, rumorejando na epiderme das árvores... E os bondes riscam como um fogo de artifício, sapateando nos trilhos, jorrando um orifício na treva de cal...”

Neblina em crise. Garoa também. O vai e vem multiplicou milhões de pernas e carros. O Arouche do largo virou arrocho. Largo do Arrocho. Não mais Casa Kosmos, nem capas, e nem pombas normalistas.

Arrisca passar ali, à noite, e seguir a encoberta Amaral Gurgel até a Consolação. Goela adentra sob a Praça Roosevelt. Desconsolo funéreo. É muito blague.

“Nossos sentidos são frágeis. A percepção das coisas exteriores é fraca, prejudicada por mil véus, provenientes de nossas taras físicas e morais; doenças, preconceitos, indisposições, antipatias, ignorâncias, hereteriedade, circunstâncias de tempo, de lugar, etc...”

- Pai Sandu! Pai Sandu!

- O que é Mocinha?

- Oi lá! Oi lá! De saia curta, as pernas toda de fora e fazendo sinal pro senhor! Ainda mais do lado de uma igreja tão bonita. Que vergonha!

- Não se avexe não, Mocinha! Come teu churrasco grego e eu vou saber o que ela tem a me dizer. Deve ser importante!

Moral da história: Mocinha não ficou órfã. Mocinha ganhou uma mãe.

“Anita Malfatti falava-me outro dia no encanto sempre novo do feio. Ora Anita Malfatti ainda não leu Emilio Bayard: “O fim lógico de um quadro é ser agradável de ver. Todavia comprazem-se os artistas em exprimir o singular encanto da feiura. O artista sublima tudo”.

Estou na cozinha. Percorro passos na tentativa de um cheiro que me leve além da escada, do quintal, o assoalho, dos quartos. O visual anterior. A sala. O piano recostado.

Tomamos café. Ficamos no aguardo de vozes. A foto ampliada na parede observa. Osvald de Andrade, Serginho Milliet. Paulo Prado, Graça Aranha. Olha o Manuel Bandeira!

Cara, você é uma figura!

Imagens televisivas contam acidente aéreo. O atchim suíno. O estufa feito. Alagados de Alagoas. Ensebadas guerras. Mendigos na chuva. O pré-sal. O carnaval. O futebol. Injurias. Juro alto. Pessimismo? Poe, never more!

“É tão grande a manhã! É tão bom respirar! É tão gostoso gostar da vida! A própria dor é uma felicidade...”

Tua casa nos abriga. Vai começar o sarau. Em beber água de tua fonte, nos banhamos. Em versar brasilidades, persistirmos.

É a nossa poesia em sua desvairada procura. Pauliceia ampliando discussões, questionamentos. Não importa se da beleza de um par de coxas. Mesmo manca, estamos poetas.

É o que importa. O modernismo sem microfonia. Continuamos atentos: "A poesia tende a despojar o homem de todos os seus aspectos contingentes e efêmeros, para apanhar nele a humanidade...”

A jabulani sul africana dungou, nos enganou. Mas, cá entre nós, vuvuzela Mário de Andrade! O microfone é todo teu.

Arlequinal!

Sarau na Casa Mário de Andrade
Rua Lopes Chaves, 546, Barra Funda.
Toda 2ª sexta-feira de cada mês, das 19h30 às 21h30.
Projeto Mapa da Poesia.
Produção: Marco Pezão, Cris Nolli e Lid’s Ramos.
Poiesis – Organização Social de Cultura.

O pernambacana Valmir Jordão desfia a invisível e palpável linha da poesia